Crônica
‘Por quem os sinos dobram’
jornal Turma da Barra



Torre da da igreja Matriz
Carrilhão de sinos próximos ao relógio

Nos 60 anos da igreja Matriz,
rendo homenagens ao carrilhão de sinos.
Pouca gente sabe, mas aqueles cinco sinos têm música, poesia e alma.
Almas que
falam e alegram o coração da gente.


Por Heider Moraes

            Quando me preparava para deixar Barra do Corda, após concluir o ginásio no colégio Diocesano e ir morar e estudar em Brasília, amigos me advertiam da saudade que eu iria sentir das descidas pelas águas dos rios Corda e Mearim, do futebol e das boas peladas, das serestas e das festas, dos bons encontros e assembléias da praça Melo Uchoa, das missas aos domingos na igreja Matriz, dos amigos que daria adeus, uns ficariam, outros partiriam para outras plagas. Tudo me foi dito com a ressalva que o único remédio eram as cartas, as velhas cartas que demoravam de sete a dez dias, as quais passaria a devorá-las e a produzi-las mais e mais. Mas ninguém tinha me dito sobre os badalar dos sinos da igreja Matriz, que todos os dias da minha infância e adolescência convivi, e pasmem, passei a ouvi-los à distância mil da cidade e sentir saudades.
            Que saudades eram àquelas que eu não sabia bem explicar? Às vezes eu escutava sem querer às 18h sem estar na Barra os sinos tocando como se estivesse no final das tardes barra-cordenses. Aos domingos, ao acordar, parecia que ouvia o repicar dos sinos, àquelas três chamadas, lembrando que haveria missa. Quando lia uma carta que dizia sobre o falecimento de alguém, ouvia em pensamentos o anúncio formatado pelos sinos da velha Matriz, que popularmente na Barra chamávamos de “tocou o sinal, quem morreu?” E minha mãe Zelinda Moraes, antes de saber quem morreu, dizia: “Deus lhe dê o céu!”. Aprendi, então, que aquele anúncio triste, aquele “sinal” é definido pela palavra dobre, por vezes, com boa elegância usamos o verbo dobrar.
            Aprendi mais. Na minha cidade satélite, na igreja São Paulo Apóstolo do Guará, badalava um sino distante e tímido. Aqueles piques e repiques pareciam mais um tim-tim-tim sem praticamente nenhum atrativo. Nas minhas andanças pela bela Brasília, ao passar próxima a uma igreja como a Catedral, aquele cartão-postal da Esplanada dos Ministérios, ouvia o soar dos sinos, mas como eram diferentes. Pareciam que não tinham som, força e beleza do carrilhão de sinos da minha cidade. A meu julgamento, assemelhavam-se a algo que não tinha alma. Passei a querer a saber mais e mais sobre os sinos. Não exatamente sinos, mas por que uns produzem bons e charmosos sons e outros nem tanto. Fui direto à literatura.
            Na biblioteca do meu colégio brasiliense bati com a obra “Por quem os sinos dobram”, do magistral escritor norte-americano Ernest Hemingway. E o devorei num átimo. Não que a obra seja sobre sinos, mas é ambientada na Espanha, onde o escritor americano, prêmio Pulitzer de 1953 e Nobel de 1954, morou anos e anos, e a força do soar dos sinos espanhóis entremeada com a guerra civil atingiram em cheio o coração e mente do escritor.
            Os sinos fizeram com que Hemingway produzisse um livro sobre a vida, o amor, a coragem, a fraqueza da condição humana e a solidariedade interligadas com a morte. Daí que senti que os sinos têm alma. Depois daquele livro pra sempre aprendi, que quando os sinos dobram rendem homenagem a alguém, à humanidade e tocam às vezes triste dentro da alma, pra lembrar que somos mortais e para a força do mistério retornaremos dia mais, dias menos.
            Soube depois que Hemingway puxou inspiração ‘Por quem os sinos dobram’ por força da guerra civil espanhola e num poema do escritor inglês John Donne, que escreveu: “Quando morre um homem, morremos todos, pois somos parte da humanidade. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti." A obra do americano foi publicada em 1940, um sucesso literário nos Estados Unidos e Europa. A pergunta que me faço a partir desses dados é que quem me garante que frei Adriano de Zânica não o leu o livro do americano? Ora, ora. Frei Adriano, entre 1939 a 1946, estava na Itália e não por acaso trouxe esse carrilhão de sinos da melhor qualidade, que tem um som afinadíssimo, que mexe com a alma dos barra-cordenses.
            Li uma certa feita carta do frei Adriano endereçada ao saudoso Justino Soares de Abreu, onde o italiano agradecia o envio de uma foto onde aparecia a praça Melo Uchoa recém-inaugurada e ao fundo cordinos no entra e sai nas Casas Pernambucanas, loja atualmente extinta na Barra, mas que durante anos comercializou tecidos de qualidade a preços competitivos. Na carta, frei Adriano diz-se contente por ver uma Barra avançando em qualidade de serviços. E sublinha que ele sonhava e via uma cidade cada vez melhor, proporcionando beleza e qualidade de vida.
            Frei Adriano trouxe da Itália 45 toneladas de material para construção da igreja Matriz, entre eles aquele carrilhão de sinos, que a partir da saudade do badalar dos sinos em meus primeiros anos de vida em Brasília, dos ensinamentos do Hemingway em uma das suas obras-primas, passei a visitá-los e prestar mais atenção aos seus sons. Na minha última subida aos céus da torre da igreja Matriz, o nosso guia, que é filho do batedor oficial dos sinos da Matriz, nos disse que um dos cinco sinos não pode mais ser usado, porque está trincado. Passei a mão nele e disse-lhe: - Obrigado. Você tocou música, alerta, chamamento, marcador de horas, poesia e notícia na minha infância-adolescência. Também os dobrados quando alguém partia para outro mundo.
            Agora em dezembro de 2011, quando o TB rendia homenagens aos 60 anos da igreja Matriz, fui na noite do dia 24 assistir à Missa do Galo, essa missa imortalizada em um dos contos magistrais de Machado de Assis. Pois bem, tive o privilégio de assistir a uma bela missa. Lembro que a nave estava lotada, toda ornamentada, refletindo beleza, as suas obras de arte, pinturas e esculturas reluzindo, a lapinha com os personagens bíblicos do nascimento de Jesus Cristo, o coral de cantores e músicos e coroinhas bem ensaiados. Todo cenário muito bem posto e preparado.
            Mas o que me fez me emocionar foram os sinos da igreja Matriz. No momento em que o ritual pede que dobremos os joelhos como forma de reflexão em diálogo com Deus, ouvi que os sinos da igreja badalaram na hora em que o frade levou a hóstia aos céus. Naquele momento me desloquei da nave em pensamento e fui até o carrilhão de sinos. Ao lembrar de vários barra-cordenses que naquele
dezembro tinham tombado por força da violência, não me contive e disse: - Por quem e quais barra-cordenses os sinos estão a dobrar? 
            Voltei-me rapidamente dos pensamentos e recomposto à realidade da Missa do Galo, que é uma missa pra saudar a chegada do menino Jesus, levantei a cabeça e notei que os sinos repicavam mais e mais. Era plena alegria. Afinal era a comemoração do nascimento de Jesus Cristo.

*Heider Moraes é jornalista, mora em Brasília (DF) 

 

 


Um dos grandes sinos da Matriz


Veja a disposição dos cinco sinos


O maquinário de controle do relógio da Igreja

 


As cordas que ligam o carrilhão ao batedor de sinos

 


Vista da praça e cidade a partir da torre da igreja

 

Atenção: Leia matérias em homenagem aos 60 anos da Igreja Matriz: Clique aqui

(TB08jan2012)