Especial
Barra do Corda nos versos
de Maranhão Sobrinho

jornal Turma da Barra

 


Local onde nasceu Maranhão Sobrinho
 (1879 - 1916)

 

*Kissyan Castro

            Sempre me causou certo desconforto saber da ausência de Barra do Corda na poesia de Maranhão Sobrinho. Não só a mim, mas muitos encaram com estranheza o “fato” de que o aedo dela se alienara, recusando-se a decantá-la em seus versos, como outros o fizeram. Curiosamente, a “negligência” do nosso poeta estende-se também a outros lugares em que viveu. Não cita Barra do Corda da mesma forma como não cita São Luís, Belém ou Manaus. Isso, porém, não significa que o poeta não tenha recorrido ao memorialismo para trazer à tona instantes, amargos ou alegres, vividos nestes lugares, ainda que isso o obrigasse a abrir mão do repúdio ao fato positivo, algo marcante do estilo “sobriniano”. Mormente em “Papéis Velhos”, o encontramos a derramar seu verbo memorialista em pelo menos três sonetos: “Papéis Velhos”, com o qual abre o livro, “Rosa Morta” e “Evocações”. Este último reflete a saudade de quando era criança e traz à luz sua cidade natal, ainda incipiente e bucólica na época:


Saudade! O sol a se esconder. O gado

descendo a serra, longe, entre mugidos

tristes e a voz do córrego anilado

enchendo a tarde branca de gemidos!

Saudade! Eu pequenino. O olhar sagrado

de minha irmã contando aos meus ouvidos

a história de algum Rei Mouro encantado

à voz das rolas dos sertões perdidos...

O velho alpendre à mansa claridade

do luar, como em sonho, despontando

entre as saudosas árvores! Saudade...

A mãe-da-lua as queixas desfiando

e minha mãe, branquinha de piedade,

diante do altar do Bom Jesus rezando...


            Impossível não vermos Barra do Corda neste poema. Em vez de mencioná-la, ele passeia o olhar reminiscente sobre ela, resgatando a cena familiar, o espaço rural, o recolhimento da tarde, perfazendo os contornos de sua gleba como a pintá-la numa tela. Maranhão Sobrinho é tido como poeta predominantemente simbolista, porque na verdade é inclassificável, de poesia híbrida, sincrética. O Simbolismo neste poema não é marcante. É verdade que o título já encerra uma característica simbolista, a de apenas evocar as coisas, sem nomeá-las; uma palavra maiúscula no interior do verso (Rei Mouro), ampliando o conceito restrito, dando sentido absoluto; certo cromatismo em “córrego anilado” e “tarde branca”, a claridade do luar, a mãe branca contra a noite escura; mas fora isso, nada mais há de elemento caro à referida escola. Não há musicalidade acentuada, nem sinestesias. A maior característica do Simbolismo é o distanciamento do mundo real e social, o divórcio entre a arte e a vida. Sendo assim, temos neste soneto uma evidente reação aos pressupostos simbolistas.
            As imagens aqui não são esfumaçadas, vagas, ilógicas. A linguagem não é hermética. A atmosfera criada não é obscura, etérea, muito embora parecesse “como em sonho”. O poeta aqui não foge para um mundo invisível, muito pelo contrário. As reminiscências o fazem reviver um verdadeiro momento passado. O poeta aqui chega a ser nostálgico como o foram os ultra-românticos da segunda geração, extrapolando, assim, os padrões estéticos simbolistas, e nos devolvendo, saudoso, uma Barra do Corda plenamente palpável em um fim de tarde.
            Da sua casinha de taipas onde nascera, à Rua do Tamboril (hoje Luís Domingues), o pequeno Zeca, como era chamado na infância, podia contemplar as serras em volta, onde pastava o gado; podia ouvi-las em seu mugir tristonho misturado às histórias de civilizações mulçumanas, “de algum Rei Mouro encantado”, contadas pela irmã (talvez Mariquinha, a mais velha). As batalhasatrozes entre cristãos e sarracenos voltavam a ser travadas no imaginário daquele menino sertanejo. Era noite. Sua mãezinha ainda não chegara da igreja. A mãe-da-lua já desfiava sua assombrosa queixa. Uma possível alusão à antiga lenda indígena na qual uma mãe é obrigada a abandonar seu filho, ainda bebê, numa densa floresta, a fim de preservá-lo duma praga maligna que se abatera sobre sua aldeia. Conta a lenda que a criança havia se transformado numa ave noturna (a mãe-da-lua) que todas as noites desfiava suas queixas pela ausência da mãe. Embora assustado, Zeca confortava-se em saber que sua mãe não o havia abandonado, mas estava “diante do altar do Bom Jesus rezando...”
            Concluímos, assim, que Maranhão Sobrinho não deixou de cantar, ainda que a seu modo, nossa querida Barra do Corda. O torrão natal deixara nele indelével marca, cuja evocação é notória em muitos dos seus livros eternos, como o provam os versos finais do soneto “Judeu Errante”:

“Onde quer que se grave o meu passo maldito
sinto a terra gemer debaixo dos meus pés...”


*Kissyan Castro é poeta, escritor, mora em Barra do Corda (MA)

(21fev2013)

 

Especial
Curiosidades sobre Maranhão Sobrinho
jornal Turma da Barra

 


Maranhão Sobrinho
 (1879 - 1916)

 

*Kissyan Castro

A APARÊNCIA

José Américo Olímpio Augusto Cavalcanti dos Albuquerques Maranhão Sobrinho era, segundo o descreveu o acadêmico Assis Garrido (1897-19), branco, de pequena estatura e ombros largos. Os cabelos, finos e longos, despenteados ao vento, dava-lhe um ar rimbaudiano. O falar tinha-o ligeiramente fanho. Por trás do comprido nome, Maranhão Sobrinho escondia uma personalidade tímida, retraída até. A condição precária em que vivia impedia-o de trajar-se com esmero, porquanto quase sempre era visto em roupas mui surradas e um chapéu de palha o tempo todo à mão. O que mais chamava a atenção, porém, era a gravata. O laço, frouxo e bojudo, emprestava-lhe, à revelia, o destaque que a anatomia lhe negara.

A POESIA

Ao que tudo indica, Maranhão Sobrinho iniciara suas atividades como poeta ainda muito cedo em Barra do Corda. O Dr. Olímpio Fialho, amigo de infância do poeta, conta que compunha ele mesmo seus poemas na tipografia do jornalzinho “Campeão”, de propriedade do seu irmão mais velho, José Fialho. A família Fialho era sabidamente monarquista e o nosso poeta, àquela época, também acariciava as mesmas ideias, posto que não visse com bons olhos os folguedos republicanos fomentados pelo jornal O Norte. A despeito do pomposo nome, o combativo “Campeão” tivera vida curta e circulação bastante restrita. Não obstante, veiculara os primeiros versos do nosso vate, que empregava o talento para rebater os insistentes ataques do adversário O Norte.
Josué Montello conta em O Imparcial, de 1º de janeiro de 1937, que as primeiras composições de Maranhão Sobrinho qualificaram-no de “condoreiro”, o que reforça a hipótese de que compunha versos engajados, participativos do cotidiano social e político da então Vila de Santa Cruz de Barra do Corda.

A INSPIRAÇÃO

Para Maranhão Sobrinho não havia mistério no versejar. Não ficava a esperar sofregamente o “belo dia” em que a inspiração decidisse visitá-lo. A Musa era-lhe muitíssimo generosa, acorria-o a qualquer hora ou lugar. Na verdade, escrevia onde quer que houvesse álcool, papel e tinta. Possuía tal experiência e domínio da técnica, impregnado como vivia das mais belas cadências, que podia escrever até no mais esconso dos antros, sem perder a elegância e a excelência próprias do seu gênio poético.

Era então nesses lugares que muitas vezes compunha seus versos, de improviso e sem quaisquer emendas, postando-os sob o copo vazio, em pagamento ao conteúdo etílico. Nunca os corrigia. Da forma como os concebia eram publicados nos jornais e revistas da época. Não à toa, a Antologia da Academia Maranhense de Letras (1958) denominou-o “um dos últimos grandes poetas maranhenses”.

A SUPOSTA FILHA

Enquanto lia os “Papéis Velhos” do nosso aedo, não deixou de causar-me profunda estranheza o poema “Anjo Morto”, em que se refere a uma filha morta. Ele a chama de “Celeste”, a “rosa-menina” em quem seu “peito de pai” se aprazia. Porém, ela “morrias pequenina”, na verdade, “um só dia me sorriste”, o que faz-nos pensar que morrera recém-nascida. Vi então a recorrência no livro do mesmíssimo assunto, sob os títulos de “Morte do lírio”, “Rosa morta”, etc (não só em “Papéis Velhos”, mas também em “Estatuetas” e “Vitórias-régias”, sob o título: “O enterro”), e concluí que talvez o poeta não estivesse dando uma de “fingidor”, que pudesse mesmo tratar-se de um fato ocorrido em sua vida. A propósito, cabe aqui transcrever as percucientes palavras do acadêmico Assis Garrido, contemporâneo do nosso poeta: “A vida material, tão cheia de privações e mesmo de misérias, porque passou, não lhe abatera tanto o ânimo como a morte da sua filhinha, que ele chorava constantemente, sentidamente, dolorosamente, nos seus livros eternos. Parece até que ele era um obcecado pela morte de Celeste, sua filha, e esperava a todo o instante que ela lhe aparecesse ressuscitada. É o que se depreende desta poesia:

Vem...

Vem, minha filha, que esta saudade
diante das outras almas me humilha.
Faze-me ao menos esta piedade!
Vem, minha filha!

Choram meus olhos como os orvalhos,
por entre rosas, por entre abrolhos...
Por sobre as relvas, por sobre os galhos
choram meus olhos...

Ah! se viesses... Voando as mágoas
todas se iriam das minhas preces...
e cantariam canções as águas...
Ah! se viesses!

Vem, minha filha, que esta amargura
que a minha sombra constante trilha
abre-me em sonhos a sepultura...
Vem, minha filha!

Por que deixaste, pomba de neve,
o ninho estreito, que perfumaste,
feito das plumas do sonho leve!
Por que o deixaste?

Recordo o outono de amor despido,
que traz as tristes tardes de sono...
E este meu peito que é teu, dorido,
recorda o outono...”


A SURRA POR ENGANO

Talvez em busca de fortuna fácil prometida pela borracha, Maranhão Sobrinho, logo após ter publicado “Estatuetas”, transfere-se para Manaus, entre os anos 1909 e 1910. Lá revê antigos colegas, entre os quais Theodoro Rodrigues (1873-1913), poeta com o qual tivera contato em Belém, e que ali acabaria por se tornar seu mais chegado amigo; e o também maranhense Nunes Pereira. Este foi quem acabou por metê-lo numa terrível enrascada.

Como os literatos da Manaus daquele decadente período viviam se digladiando mutuamente, Nunes Pereira, apontado acima e que nutria desavenças com o jornalista Generino Maciel, publicou em jornal esta quadra ofensiva:

“Genebrino, Genebrino,
que escreves coisas fecais,
onde anda esse suíno
que se chama Th. Vaz?”

Thaumaturgo Sotero Vaz (1869-1921), comparsa de Generino e a quem também fora dirigida a afronta, ferido em seus brios, arquiteta uma vingança particular. Como era mui amigo do chefe de polícia, solicitou-lhe alguns homens a fim de darem uma lição no petulante versejador, já que acabara de receber informações sobre o seu paradeiro. Maranhão Sobrinho, alheio ao que se passava, hospeda-se com sua amada no quarto em que na véspera fora visto seu amigo Nunes Pereira.
Os policiais, em lá chegando, alta madrugada, caíram vorazes sobre aquele que juravam ser o autor da malfadada quadra, dando-lhe baita surra e atirando-o na prisão. O nosso poeta, assim, acabou pagando por um crime que não cometera.

A MORTE

Depois da humilhação pública que sofrera, a vida de Maranhão Sobrinho nunca mais foi a mesma. Não frequentava mais os lugares habituais em que discutia literatura e política. Seus últimos dois anos foram quase de completo isolamento em seu casebre de barro coberto de zinco, à Avenida Urucará, bairro Cachoeirinha, subúrbio de Manaus, onde raramente era visitado. Tal como aquele rei que passara a vida procurando o pássaro azul – segredo da felicidade e vida longa – e, sem o ter encontrado e já prostrado, vendo aproximar-se a morte, pede aos seus que o levantem e o conduzam até a janela a fim de ver pela última vez o pôr-do-sol, assim o fez o nosso bardo. Às três da manhã do dia 25 de dezembro de 1915, cala-se o grande bardo, aquele menino Zeca que brincava nas ruas poeirentas de Barra do Corda, que se escondia embaixo de rumas de algodão após alguma travessura, e que se tornaria depois o “poeta maldito de Atenas, o maldito Mallarmé maranhense”, como dizia de si mesmo. A ele aplica-se a assertiva – parafraseando o conhecidíssimo verso de Camões –: Para tão longo nome tão curta a vida. Mas ao contrário daquele rei, Maranhão Sobrinho vira o seu pássaro azul nos pequeninos olhos de Celeste, como “dois brancos pares de travessas asas”, nas “almas virginais das borboletas”, nos perfumes que adejam qual “invisível asa”, no amor que abre suas asas de luz como manhãs que nascem do nosso peito. O pássaro azul adeja em seus belos poemas enquanto os lemos. Debruçarmo-nos em seus livros é sentir a lufada intérmina de suas asas – a “asa imortal do Artista” – a percorrer “um mundo de alvoradas”.

*Kissyan Castro é poeta, escritor, mora em Barra do Corda (MA)

(TB9jan2013)

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