Coluna da Luciana Martins

nº 123, domingo, 17 de abril de 2011

Novidades
jornal Turma da Barra

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,[...]
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de frete, [...]
Eu, que tenho sentido a angústia das pequenas coisas ridículas,[...]
Fernando Pessoa

*Luciana Martins 


            O mundo contemporâneo tem invenções estranhas, quase esdrúxulas.
            Não é que agora criaram o personal-friend no Brasil? E atentem para o fato de não haver tradução para o termo – afinal baixamos de vez as calças para o idioma estrangeiro: a lista de termos compostos com “personal” é infinita e vai até onde nosso bolso consumista pode pagar.
            “Amigo de aluguel” não soaria tão chique como “personal-friend’, deve ser o que pensam tais profissionais que preferem autodenominar-se em inglês.
            Aliás, a bem da verdade, não “acabaram” de criar esse negócio. Isso já é novidade antiga, do final de 2006. Eu é que sou desinformada e não percebo o “avanço da civilização” a tempo de não ser pega de surpresa com tanta frequência.
            É ainda recente, também, a descoberta que fiz do personal-dancer. Este profissional em ação eu mesma testemunhei num clube brasiliense, meses atrás, na festa de forró em que fui com uma de minhas irmãs e amigos.
            Verifiquei que a mesa ao lado da nossa estava cheia de mulheres de meia-idade e de rapazes bem mais jovens. Primeiramente imaginei se tratarem ali de tias acompanhadas de seus respectivos sobrinhos. Depois percebi que estranhamente os sobrinhos agarravam bem forte as tias na hora da contradança. Notando meu espanto discreto, a amiga de minha irmã me explicou: “São rapazes contratados, Luciana.”
            “Nossa, como estou por fora”, pensei. Aluga-se um par para dançar a noite toda, mas, com toda aquela intimidade, pelo visto, depois o par é levado para o apartamento e presta serviços sexuais à contratante que acompanhou – “Garotos de aluguel” ou “moços de frete” (no dizer elegante de Fernando Pessoa, que, na verdade, significavam o que hoje chamamos de “boys”, rapazes que fazem serviços de leva-e-traz, paus-para-toda-obra ).
            Voltando ao personal-friend, descobri sua existência um dia desses, ao assistir a uma matéria a respeito da nova profissão no Estúdio i, programa de variedades da “Globonews”. O rapaz entrevistado, que vive disso, pareceu bastante sério no que dizia, e procurou deixar claro que não se deve confundir personal-friend com “acompanhante”, porque este último já traz o estigma de alguém que proporciona encontros eróticos.
            Ainda assim, como procuro não ver com preconceito tanto em “acompanhantes” quanto em prostitutas, quero me comportar da mesma maneira no que tange ao personal-friend. Mas me preocupo com o que pode representar sociológica e moralmente esse tipo de trabalho remunerado.
            Ressalte-se que o preço cobrado para um encontro de cerca de uma hora (como numa sessão de terapia) chega ao valor de R$ 300,00 (trezentos reais), havendo aqueles e aquelas que cobram mais barato, mas nem tanto (R$ 50,00 é o mínimo), o que nos leva a crer que pobre de marré- marré jamais vai pagar alguém para se fazer ouvir ou ser aconselhado.
            O debate sobre o que vem a ser a verdadeira amizade remonta à Antiguidade. O romano Cícero (nascido em 106 a.C), por exemplo, escreveu um diálogo intitulado “Da amizade”, de onde retiro a seguinte questão: “Que coisa tão doce como ter um com quem falar de todo tão livremente como consigo mesmo?” Um encontro de almas como esse se dá evidentemente com raridade, mas acontece.
            Tento imaginar até que ponto tem razão o personal-friend que justifica seu labor com o argumento de que “é difícil as pessoas se abrirem, sempre há algum interesse nas amizades e uma imagem a manter” (citado por Larissa Coldibeli, no texto “Amizade tem preço” em http://www.siteselinks.com.br/amizade-tem-preco.htm ) .
            Esse tipo de justificativa me deixa um tanto assombrada porque implica o pressuposto de que sempre está em jogo o oportunismo e a manutenção de falsas aparências nas relações amicais. Se isso fosse verdade (e Machado de Assis não pestanejaria em afirmar que o é), não haveria amizades puras, desinteressadas, platônicas.
            Quero crer que, no fundo, quem deseja encontrar a amizade são os personal-friends. Deveriam, portanto, passar a ser chamados de “caçadores de amigos”, ou, para permanecer na língua franca atual: “friend-hunters” .

*Luciana Martins é professora e poetisa, mora em Brasília
lucianamar@terra.com.br

 

Coluna da Luciana Martins

nº 122, domingo, 20 de março de 2011

Hiroshima Nagazaki Fukushima
jornal Turma da Barra

Luciana Martins


            Nos últimos dias, amigos meus publicaram homenagens comoventes ao Japão em suas páginas do Facebook. Um deles postou um link para o Youtube em que víamos uma parte do filme “Sonhos” do Akira Kurosawa (quem conhece sabe que o filme é uma das coisas mais belas que um ser humano já fez em todos os tempos, diga-se de passagem), outro colocou link para o blog de notícias da rede de TV Al Jazeera.
            Além disso, várias outras referências têm sido feita à tragédia do dia 11 de março passado e, por extensão, à cultura e à arte japonesa como forma de homenagem ao país devastado.
            Me contaram também de uma reportagem que passou na TV sobre o fato de que, mesmo com diversas cidades destruídas e com o caos nelas instalado, a população consegue permanecer, na medida do possível, organizada e calma.
            O repórter chamava atenção para o fato de não estar havendo saques a lojas e supermercados, ainda que as cidades estejam sob estado de calamidade pública.Nem mesmo com a falta de água potável e com a comida escassa, japonês algum ousou saquear qualquer estabelecimento comercial.
            Nessa reportagem, compara-se a passagem do terremoto e do tsunami japonês à do furacão Katrina em Nova Orleans nos EUA em agosto de 2005.
            Nos Estados Unidos houve saques, assassinatos, estupros e roubos, ao contrário do que está acontecendo no Japão.
            Depois do fatídico dia 11, vários outros tremores vêm ocorrendo no país, mas nenhum com a magnitude do primeiro, localizado na costa noroeste do país, que foi mais devastador em função do tsunami que o seguiu.
            Todavia o que mais está apavorando as pessoas é o vazamento na Usina Nuclear de Fukushima, província do nordeste do Japão, ocorrido depois de três de seus reatores terem explodido em função da falta de eletricidade causada pelo terremoto.
            Não custa recordar o fato amplamente sabido de que, em agosto de 1945, as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki foram atingidas por bombas nucleares lançadas pelos EUA cujos nomes ridículos eram “Little boy” e “Fat man” respectivamente, tendo deixado mortas cerca de 220 mil pessoas — contabilizando as que foram morrendo posteriormente de câncer em conseqüência do bombardeio.
            Sobre esse genocídio muito se falou, mas nada se assemelha ao filme de Alain Resnais, “Hiroshima Mon Amour”, lançado em 1959. O cineasta francês, em seu primeiro longa-metragem, consegue contar uma linda e dolorosa história de amor entre uma atriz francesa e um japonês, morador de Hiroshima, e, ao mesmo tempo, fazer uma homenagem contundente à resistência dos japoneses à devastação provocada pelo cogumelo nuclear.
            Outra recordação que vem à mente é a de dois dos oito episódios do já citado “Sonhos” de 1990, mais uma obra-prima de Kurosawa (ele possui várias). “Demônio Chorão” e ”Monte Fuji em vermelho” agora reaparecem para nós como um então presságio do mestre japonês.
            Nesse último, depois da erupção do Fuji em consequência da explosão de usinas nucleares, os sobreviventes fogem desesperados para longe do local da explosão, mas acabam sendo perseguidos por nuvens radioativas de cores cuja combinação — belíssima — revela um paradoxo entre o seu esplendor e o que elas representam: a coloração da fumaça radioativa tinha sido inventada para que se soubesse identificá-la em momentos de perigo.
            A impressão é que Kurosawa não somente se referia ao passado como também ao futuro, futuro este que agora se presentifica, de forma assustadora, em Fukushima.
            Não creio que seja possível citar Shakespeare, neste momento, com o seu “All’s well that ends well”.

*Luciana Martins é professora e poetisa, mora em Brasília

lucianamar@terra.com.br

 

Coluna da Luciana Martins

nº 121, quinta-feira, 10 de março de 2011

Uma luta a mais
jornal Turma da Barra

 

“O padre na televisão/ diz que é contra a legalização do aborto/ 
e a favor da pena de morte/ Eu disse: NÃO, que pensamento torto!” 
(Caetano Veloso)


            Até hoje me irrita recordar da palhaçada da última eleição para a presidência da República, com bispos da ala absolutista da igreja católica se metendo no meio da campanha, declarando que recomendavam aos fiéis que votassem contra todo aquele ou aquela que defendesse a descriminalização do aborto.
            Isso tudo no lugar de cuidarem de seus problemas internos, lá com o papa – este mesmo, para a surpresa de muita gente, já tendo feito vista grossa para um sacerdote pedófilo em sua congregação.
            Volto a tocar em tema incômodo, mas é sempre urgente e necessário discuti-lo com os olhos da razão e da ciência e não com os da emoção distorcida, que é o que ocorre na maior parte das vezes em que o aborto entra em pauta.
            No ano de 2010, a Pesquisa Nacional de Aborto (realizada pela Universidade de Brasília e pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero-instituto Anis) trouxe à baila o resultado de uma realidade visível a olhos nus, ou, melhor dizendo, sabida à boca pequena no segredo silencioso e tácito de uma imensa maioria de mulheres que realizam suas escolhas independentemente de leis escritas.
            Uma de cada cinco mulheres alfabetizadas (entre 18 e 39 anos de idade) fez aborto em algum momento de sua vida fértil. Várias dessas mulheres fizeram, inclusive, mais de um aborto, cumpre ressaltar.
            Para garantir que a amostragem fosse rigorosa, foram selecionadas somente mulheres alfabetizadas e do meio urbano. Não foram contempladas as não-alfabetizadas da cidade e nem foi coberta a zona rural. Esse método visou assegurar o sigilo das informações e preservar a identidade das pesquisadas, que preenchiam o formulário sozinhas, sem a interferência de técnicos, colocando anonimamente a pesquisa numa urna depois de responderem todos os dados.
            De todo modo, pôde-se fazer duas relevantes descobertas. A primeira delas é que é baixa a escolaridade da maioria das pesquisadas que reconheceram ter feito aborto, revelando outro aspecto do problema de que podemos tratar oportunamente nesta coluna mais adiante.
            Outra constatação é a de que metade das pesquisadas utilizou medicamentos para induzir o aborto da última vez que o fez. De maneira que se pode concluir que a segunda parte o fez sob péssimas condições médicas e higiênicas, dado o fato de não haver dinheiro para a escolha de profissionais experientes.
            Enfim, dá para a gente imaginar que os números dessa estatística seriam bem mais elevados caso se pudesse fazer a pesquisa às claras e cobrindo todo o território nacional.
            Mas é possível prever as represálias que sofreriam as mulheres que expusessem a verdade de terem realizado aborto induzido. Teríamos “a letra escarlate” pintada na roupa e nas portas de cada uma delas, condenadas que seriam pela comunidade, como se lê na narrativa de Nathaniel Hawthorne.
            Neste oito de março, dia internacional de luta da mulher, vale a pena, portanto, pensar em mais esta luta travada pelas mulheres na busca de melhores condições de vida tanto junto com parceiros ou mesmo solitariamente.
            Não ouso dizer que a decisão de abortar se trata tão somente de “como a mulher decide lidar com o próprio corpo”, argumento que muito se usa no sentido de justificar, pela via da posse, a prática do aborto.
            Por outro lado, considero um descaso absurdo a recusa ao debate por parte das comunidades médica e intelectual do país, que insistem em misturar clericalismo e moralismo com um problema de tal dimensão no âmbito da saúde pública. Em função dos dados acima relatados, creio que o acesso à informação por meio da TV muito contribui para a forma como lidam com a realidade essas mulheres tão “marcadas”.
            Por isso considero digno de comemoração o modo com que trataram do tema os autores da novela das nove (“Insensato Coração”), na Rede Globo na semana passada.
            Finalmente tomaram coragem suficiente pra encarar a questão do aborto nas novelas brasileiras. Faz tempo venho reclamando disso. A última do Manoel Carlos me deixou enojada com o trato que se deu à personagem de Taís de Araújo, conforme deixei registrado aqui na ocasião.
            A personagem Carol, interpretada por Camila Pitanga, descobre-se grávida e, depois de uma frustrada tentativa de compartilhar a notícia com o pai da futura criança, resolve impetuosamente fazer o aborto.
            Acaba sendo convencida pela irmã a não o fazer, tendo em vista o fato de não poder engravidar em função de uma endometriose que, no caso, teria regredido, mas cuja regressão não seria suficiente para lhe garantir uma segunda gravidez no futuro.
            O marcante do capítulo foi a ida de Carol à clínica – lugar nada desagradável, nada sujo, com nada de aparência criminosa; mostrando mulheres entristecidas e sérias, mas normais.
            A discussão entre as personagens envolvidas na cena é bem conduzida, de modo que, em momento algum, apareça o fantasma da culpa, do crime e do assassinato, tão presente em outros tratamentos cênicos dados ao assunto vistos anteriormente na televisão.
            Só podia ser mesmo iniciativa do mestre Gilberto Braga e do parceiro, Ricardo Linhares, que conseguiram colocar em pauta o aborto, dessa vez sem maniqueísmo e com bom senso, tocando numa das grandes feridas expostas
do Brasil.
            A partir de agora, esperamos seja consolidado, de uma vez por todas, o debate em alto nível sobre questão tão controvertida, debate este que vinha sendo barrado pelo moralismo hipócrita de uma sociedade nem sempre correta e que busca apenas o politicamente correto.

*Luciana Martins é professora e poetisa, mora em Brasília
lucianamar@terra.com.br

Coluna da Luciana Martins

nº 120, sábado, 19 de fevereiro de 2011

“Deixai vir a mim as criancinhas”
jornal Turma da Barra

Ao amigo Álvaro Braga, caçador
(necessário) do tempo perdido.

*Luciana Martins

            Hoje basta de ontem! De anteontem. De trasanteontem. De antanho. De outrora.
            Pode ser que amanhã eu me reporte a hoje, que será ontem, sendo que ontem será o anteontem de amanhã, e assim sucessivamente até o infinito do passado ou vice-versa: o passado do infinito.
            Afinal é isto que passamos o tempo todo a fazer: a colocar no passado uma marca sem fim, traçando-lhe uma linha que nunca acaba.
            Brás Cubas em eterno delírio, não acordamos jamais do sonho de resgatar o que foi, o que se foi, o que acabou para todo sempre em forma de acontecimento, e que não possui retorno, exceto em nosso insistente desejo de congelar a memória (como em fotografias) no ponto que nos interessa mais resguardar.
            Um mundo ideal em que a cidade era perfeita, as pessoas, perfeitas, a moral, perfeita; o prefeito, perfeito; perfeitos o vereador, o juiz, o promotor; a moça e o moço, perfeitos, crianças, perfeitas; o índio e a índia, perfeitos bons-selvagens.
            A Igreja Matriz, perfeita; a Igreja do Calvário, perfeita. Nossa Senhora, perfeita, Deus, perfeito; Maria e José, perfeitos; Jesus, um perfeito salvador.
            Em suma: Barra do Corda perfeita...
            Ajudaria pensar na doutrina do eterno retorno, que funcionou na Grécia pré-socrática, tendo sido teorizada por Heráclito, que (quanta ironia!) pagou o preço altíssimo de morrer ao relento, o corpo todo enterrado, somente a cabeça de fora — tamanhas eram suas dores e seus males? (O passado não foi perfeito sequer uma vez?
            Pensar nisso num sentido positivo, em que a oportunidade de reviver o momento também trouxesse uma chance para modificá-lo no que este não logrou ter sucesso?
            Mas “ninguém banha duas vezes no mesmo rio”. Ora é o Corda. Ora é o Mearim. A pessoa não é mais a mesma, as águas correram e não são mais as mesmas. Etc. Etc.
            Creio que importa agora olhar para a frente, e, antes ainda, olhar o presente, o que está diante de nós, na nossa cara, cara a cara.
            Afirmação da vida, procurar na CRIANÇA a saída de tantas mazelas. Ninguém é “somente criança”, exceto a criança (se esta não tiver perdido precocemente a infância, claro).
            Se se fosse, viraria realidade a canção de Chico Buarque sobre a cidade ideal sonhada em’ “Os saltimbancos”. Vocês se lembram? Lá todos seriam “somente crianças”...
            Atravessando de moto-táxi o centro em direção à periferia— lá pras bandas do Arco do Calvário (na verdade, periferia do próprio centro, visto que nossa cidade cresceu sobremaneira e possui dezenas de bairros na Altamira e na Tresidela) — vou, acompanhada de Álvaro e sua prole, procurar as crianças das redondezas para entregar-lhes uma bola de futebol nova.
            Álvaro faz disso um ritual, em que se fotografa e se traça um marco histórico.
            Eu, poetisa da cidade, dou a minha contribuição aos pequenos (só meninos; as meninas não vieram, por isso sugeri que, da próxima feita, doemos bolas de vôlei). Outras pessoas “célebres” da Barra entregaram bolas antes de mim e o farão depois. O projeto é dar a essas crianças aquilo com que brincar, ao invés de lhes deixar sem opções, diante da do crack — agora moda também em nosso rincão.
            Logo ao chegarmos, meu amigo percebe que esquecera a bola mesma em minha casa. Ele volta, com seus dois filhos, para buscá-la, enquanto eu fico esperando na porta da casa de um dos meninos. Conto aos que ali se encontram que eles provavelmente aparecerão no livro de Álvaro, e a informação provoca alvoroço, de modo que um vai chamando outro depois outro depois outro, até eu me encontrar rodeada por quase um time inteiro de futebol.
            Observo Joelson, um dos líderes, dono do cachorro que nos acompanha durante todo o trajeto, o Crizipo. Adultos não costumam tratar bem animais. Em cidades menores, como a Princesa do Sertão, vê-se isso com tal nitidez que dói. Eu disse depois a um casal amigo de São Luís: “Na Barra, os cachorros são tratados como cachorro; é um verdadeiro horror!”
            Mas Crizipo reina; aqueles meninos lhe adoram. Basta esse exemplo e já estou depositando na criança a esperança. Lugar-comum, rima óbvia. Aqui não é o programa da Xuxa, entretanto. O que se quer não é a luz de holofotes, mas a festa pura e sincera dos meninotes, que começam a se ajeitar para tirar as fotografias. Ninguém quer sair feio.
            Como sempre, sinto sede no meio do caminho. Álvaro conhece cada morador da região, e logo me vejo dentro de uma casa bem arrumada, na qual funciona um mini-salão de beleza. Tudo é tão organizado que me comove. Estou no centro da vida, penso discretamente para ninguém perceber.
            Volto o olhar para uma lista de deveres escolares pregada na geladeira. “Aqui tem pré-adolescente! — exclamo, o que é logo confirmado pela dona da casa, orgulhosa.
            Vivendo experiências como essa, recuso-me a aceitar a tese de que “o menino é o pai do homem” (frase do poeta inglês William Wordsworth) no sentido determinista que lhe imprime Machado de Assis (particularmente em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e em “Dom Casmurro”), ou seja, no de que o germe daquilo que a pessoa “vai ser”, para o bem e para o mal, já estaria implantado na criança em conseqüência do meio em que vive e também do que traz em sua personalidade.
            Prefiro imaginar a tese de um ponto de vista redentor, em que meninos e meninas seriam pais e mães dos homens e das mulheres adultas, sendo capazes de lhes oferecer de volta o gosto da infância. De outro modo, também poderia ser como se as crianças trouxessem em si o poder mágico de modificar o futuro para melhor, bastando possuir as condições básicas de sobrevivência no mundo. Fico aqui.

*Luciana Martins é professora e poetisa, mora em Brasília
lucianamar@terra.com.br

Coluna da Luciana Martins

nº 119, segunda, 27 de setembro de 2010

Birras de certos atletas precoces
jornal Turma da Barra


            Nos últimos dias houve bastante notícia chamativa na mídia, mas fiquei impressionada, particularmente, com o bafafá provocado pelo menininho mimado da Vila Belmiro, que culminou na demissão do diligente técnico Dorival Júnior, que vinha fazendo um trabalho criterioso, tendo sido ele, por sinal, que projetou os atuais famosos “meninos da Vila”.
            Tudo começou, conforme é sabido e consabido, com um pênalti sofrido por Neymar, na partida contra o Atlético Goianiense, no dia 15 de setembro passado, de que Dorival Junior solicitou que o jogador Marcel fizesse a cobrança.
            Ferido em seu orgulho de “astro-rei” do futebol, por não ter sido Ele a cobrar o pênalti, o garoto de 18 anos então resolveu se insurgir contra o “professor” ali mesmo, passando a desobedecê-lo acintosamente em campo, recusando-se a passar a bola para os colegas, brincando com esta e fazendo caretas de criança, como se estivesse representando uma palhaçada. Ainda para completar, respondia com xingamentos às orientações do treinador durante a partida diante das câmeras de televisão, como que para mostrar-se “muito macho”.
            Pelo que andei lendo, Neymar há muito não vem apresentando um comportamento razoável como jogador de futebol e ídolo de crianças e adultos.
            Ninguém está exigindo um santo, um candidato a entrar no seminário de Jesuítas, que não fale palavrão, que não se zangue, que seja impoluto. Faz parte do mundo do futebol o uso do palavrão de maneira natural entre os colegas. Mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.
            O que Neymar fez em relação a seu técnico foi desrespeito e insubmissão. Deixou de seguir as regras solicitadas (que não são regras de Dorival Júnior, diga-se de passagem; são do futebol) e passou a seguir as suas próprias, pautadas pelo orgulho ferido e pelo excesso de autoconfiança.
            Na sequência, veio a punição do técnico. (Eu gostaria que tivesse sido um puxão de orelha, na que não possui brinco de diamante - de que Neymar é colecionador).
            Punição esta que, infelizmente, durou pouco: suspensão. Do primeiro jogo, não tão importante, a direção do clube deixou passar. Pareceu-nos que a sentença do professor Dorival Júnior seria mantida, o que deu certa esperança de que futuramente poderíamos vir a ter um Neymar refeito, que aprenderia com os erros e que aprenderia a respeitar seu treinador.
            Observei, todavia, que o pedido de desculpas feito pelo jogador na imprensa foi um tanto esquisito. O rapaz não conseguia abrir a boca nem pronunciar direito as palavras, mas não de vergonha pelo que fizera e sim de soberba, de raiva por ter que estar ali, expondo-se em ato de contrição, ao invés de posando para fotos de capa de revista com seu sorrisinho maroto, já preparado para o flash das câmeras dos paparazzi.
            Continuando a novela, eis que chegou o 21 de setembro de 2010, dia precedente ao jogo do Campeonato Brasileiro, Corinthians e Santos. Os noticiários de televisão e rádio amanheceram em polvorosa. Será que Dorival permitirá que o craque participe do clássico? – todos se perguntavam. Craque é craque, ele tem que jogar. Uns palavrõezinhos não matam ninguém. Dorival está exagerando. Etc. – Era o que se dizia por todo o lado.
            Seguindo a sua lógica profissional, Dorival Júnior manteve a suspensão. Foi só a conta. De noite, Dorival estava sumariamente demitido, com o argumento ridículo de que a Diretoria do Clube ficara “irritada” com a forma como o treinador teria lidado com o caso.
            Vi a declaração rápida de um Dorival perplexo, que não tinha mais nada a dizer sobre a afronta que sofrera (tanto a do craque como a do Clube).
            Enfim, Neymar jogou seu jogo, mas não foi vitorioso. O Peixe perdeu para o Timão por 3 x 2. Bem feito.
            A confusão ainda rendeu, dias depois, o corte (espero que definitivo) de Neymar da seleção brasileira por Mano Menezes. Tome-lhe. Adorei. Li na “Folha de São Paulo” na crônica de José Geraldo Couto, que Juca Kfouri acha que “seria mais produtivo Mano chamar Neymar para uma conversa de homem para homem”.
            Que homem? Fico com Renê Simões, técnico do Atlético Goianiense, que deu um excepcional depoimento ao final da partida fatídica. “Está na hora de alguém educar este rapaz ou nós vamos criar um monstro.(...) Por enquanto, ele não é um homem, não é um grande jogador. Ele é um projeto disso tudo. Por isso, tem que ser educado, pelo bem do futebol brasileiro.”
            Agora, a poeira se assentou um pouco. Dorival Júnior foi contratado para reger o Atlético Mineiro, portanto não está mais desempregado.
            O episódio me faz recordar o do goleiro Bruno, guardadas as devidas proporções. Esses garotos do esporte que, de fato, possuem muito talento e que, por isso, começam a receber todo tipo de incentivo (e dinheiro), devem ter um acompanhamento rígido por parte de seus educadores (dentre eles, o do técnico), principalmente porque, em boa parte dos casos, sua formação familiar é cindida, problemática, insuficiente para dar conta da complexidade do que passam a enfrentar com a fama precoce.
            O vínculo com o esporte deveria vir ligado a um acompanhamento psicológico contínuo e obrigatório. De preferência, seria interessante se se mantivesse ou recuperasse o vínculo com a escola.
            O que não se pode perder de vista é que esses meninos têm que aprender a ser contrariados. Ouvir um não e aceitá-lo faz parte da vida.
            De outro modo, agirão assim:
            “A garota de programa não quer fazer sexo sem camisinha, então vai apanhar.”
            “Não quero pagar pensão para o filho, por isso vou matar a mãe da criança”.
            E por aí vai.

*Luciana Martins é professora e poetisa, mora em Brasília

lucianamar@terra.com.br

Coluna da Luciana Martins

nº 118, domingo, 12 de setembro de 2010

Os bichanos
jornal Turma da Barra

*Luciana Martins


            Hoje de manhã, acordei com a ligação de minha filha, que fora ao clube pegar sol com dois amigos. Ela estava muito nervosa porque tinha achado um gato sem olhos (depois fomos ver que ele tinha olhos mas não conseguia abri-los), com pus em toda a cara. As patas estavam todas estropiadas, o pelo todo ressecado e invadido de pulgas.
            Amanda não conseguia compreender como, num clube da suposta “sociedade brasiliense”, seria possível encontrar um animalzinho em tais condições de abandono e saúde.
            Eu fiquei estatelada na cama. Ouço relatos diários de amigas que trabalham resgatando animais das ruas para tentar lhes dar um lar, e sei que não  é brincadeira o que acontece por aí na calada da noite.
            “Liguei só para partilhar a minha revolta contra a humanidade cruel; este é mais um gatinho de rua, não há nada a se fazer.” — concluiu chorosa Amanda, desligando o celular.
            Pouco depois liguei de volta para ela: “Leve-o no veterinário dos nossos gatos, na quadra 115 sul (onde fica o salão de sua tia) e veja se eles podem aceitar que a gente pague o tratamento e eles ficarem com o gato até acharmos quem o adote, com a ajuda da SHUB, Sociedade Humanitária Brasileira, que foi a ONG que nos deu para adoção os dois gatos que possuímos.”
            Amanda se animou imediatamente. Lá chegando, encontrou logo a tia Larissa na porta de seu salão de beleza, e arrebanhou a tia também em direção ao veterinário.
            Hoje quem estava de plantão era uma médica. Ela logo viu que o gato estava com uma conjuntivite das brabas, que por isso não conseguia abrir os olhos. Viu que este já foi castrado e vacinado, ou seja, que já teve dono, e que foi provavelmente abandonado no clube por algum sócio.
            Por causa da conjuntivite, não só os olhos do gato não abriam como o seu nariz estava escorrendo muito. Além do quê, uma de suas patas estava muito machucada e ele andava mancando.
            Ao fim e ao cabo, foi preciso que trouxéssemos o bichano pra casa mesmo. Eu já passei por situações parecidas antes (uma vez peguei seis gatinhos recém-nascidos na rua) e sei que quem pega tem que se responsabilizar por tudo que vem depois. Larissa se encarregou de pagar a consulta e os medicamentos num cheque pré-datado pra mim.
            Dali a menos de uma hora, Amanda chegou em casa com o Pabom (já veio com nome) enrolado na toalha de banho de seus amigos.
            Levamo-lo direto pro banheirinho onde ele vai morar por uma semana, longe dos nossos outros bichanos, que não podem se infectar com a conjuntivite. Demo-lhe de comer. Pusemos água quente num balde e minha filha lhe deu um belo banho, depois do qual o sequei de secador de cabelo.
            Passamos mais soro fisiológico nos olhos de Pabom e lhe mostrei sua caixinha de dormir, com um lençol dobrado. Ele entrou nela imediatamente e desmaiou de cansado.
            Olhamos compadecida para aquela criatura tão dependente da compaixão humana. Amanda se apercebia de o quanto é difícil ser um bichano neste mundo, porque não se é notado por quase ninguém, e se se é, apenas o é, na maioria das vezes, para servir de objeto que o ser humano usa para exercer suas crueldades.
            E eu que uma vez aqui disse que queria ser gato....
            Tenho que consertar a fantasia: ser gato sob certas condições, diga-se de passagem: vivendo ao redor de gente de bem.
            Mas onde é que há gente de bem neste mundo? Pergunto como perguntou parecido Álvaro de Campos [Fernando Pessoa] em “poema em linha reta”.
            Mais tarde, ligando para uma amiga, que tem um filho pequeno, e que teve seu gatinho recentemente envenenado por algum vizinho bem-intencionado. Contei a história, e perguntei se ela não aceitaria ficar com o Pabom, embora ele já fosse um gato de três anos de idade. Fiz a propaganda dele, falando de sua docilidade. Ela passou o telefone para Gabriel, o filho de 4 anos, e eu perguntei a ele pessoalmente, se ele queria um gatinho que Amanda encontrara na rua abandonado e de que estávamos cuidando.
            Gabriel aceitou na hora, sem pestanejar. Pabom já tem lar esperando-lhe. Este gato de rua teve um destino bom. Quantos outros estão por aí, seus olhos machucados ou furados, as patas quebradas?

*Luciana Martins é professora e poetisa, mora em Brasília

lucianamar@terra.com.br

Nota: A parte 2 da crônica Nostalgia e Memória sairá em outra ocasião.

 

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