Artigo
A litúrgica perda da inocência
jornal Turma da Barra

 


Luciana Martins

"Creio que, naquela época, o Pirronca já me seguia incansavelmente 
pelas ruas da Barra quando eu saía do cinema ou da casa da vovó-Edite de volta à casa da vó-Corina
 por volta das dez da noite. No entanto, se eu nunca havia sequer o deixado atravessar a rua
 em minha direção, que dirá pegar no meu dedo mindin para no mínimo 
configurar-se algo como um "namoro"
"

*Luciana Martins

            Antes da confissão, sentamo-nos todos (umas cinco ou seis meninas e um menino, se a memória não me falha) em bancos separados da capela mor da igreja Matriz de Barra do Corda.
            Silêncio absoluto. Nesse momento fiquei a remoer ardorosamente os meus pecados, a buscá-los todos pela corda do poço de uma memória de onze anos de idade.
            Era o momento de pôr pra fora os atos pecaminosos cometidos porque no dia seguinte seria nossa Primeira Comunhão.
            Estava quase chegando a minha vez e eu nada ainda tinha de terrível e de grave para dizer à autoridade clerical que logo haveria de enfrentar e que já se encontrava dentro daquela "cápsula" obscura a que eu, tremente, espiava de soslaio. Isso sem contar a busca mental que empreendera na noite anterior...
            Puxa vida, o fato é que eu era uma boa menina! “E agora?” — pensava.
            Repetia de forma mecânica, mas ao mesmo tempo com muita dignidade, a aprendida “oração da confissão” (que se recitava na missa na hora do ato de contrição):
             "Por minha culpa, por minha tão grande culpa... confesso à Virgem Maria, aos anjos e aos santos, e a vós,irmãos, que pequei... etc e tal ".
            Detalhe estético: eu usava pela primeira vez na vida uma saia longa (a "máxi"), ultima moda na televisão, que as costureiras de BdC fizeram aos montes na ocasião: era vermelha com listrinha branca e debrum de renda. Inesquecível!
            Minha vó-Corina me orientara durante aqueles dois meses inteiros de catecismo, feito na antiga parte de trás da igreja (que já foi pro beleléu há muito tempo), para eu me comportar direitinho porque estaria vivendo um momento fundamental de minha vida.
            A próxima seria eu!!! Ui, ai, ai....
            Entrei no confessionário, me ajoelhei contrita, e, depois que o Senhor Santo Padre me sussurrou suas admoestações, soltei, de supetão: "Padre, eu sou teimosa e... namoro escondido!!"
            O quê? Quem? Que susto!
            Quem era esse "eu" que não era eu?
            De quem eu estava falando? Interrogação...
            Quem era meu namorado?
            Creio que, naquela época, o Pirronca já me seguia incansavelmente pelas ruas da Barra quando eu saía do cinema ou da casa da vovó-Edite de volta à casa da vó-Corina por volta das dez da noite. No entanto, se eu nunca havia sequer o deixado atravessar a rua em minha direção, que dirá pegar no meu dedo mindin para no mínimo configurar-se algo como um "namoro" — às escondidas que fosse...
            No entanto, tive de dizer algo; afinal, como poderia me declarar imaculada e impoluta no meio de tanta gente pecadora com a mesma idade que a minha? Impossível passar por essa vergonha!
            Simplesmente tomei emprestado o “pecado” da minha prima, que já durava quase um ano e era líquido e certo.
            Não era de todo mentira. De alguma maneira, participava dele porque eu é quem vigiava na esquina, à espreita, para que nenhum adulto viesse a descobrir o que acontecia no muro do grupo escolar da Isaac Martins.
            O Padre, depois de tão ignominiosa confissão, respondeu assim mesmo, com estes termos:
            "Eu te perdôo, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém. Reze dez ave-marias e um pai-nosso".
            Reconheço que saí de lá mais estupidificada do que entrara. Ele só tinha aquelas palavras para me dizer?
            Rezei o que foi pedido mais mecanicamente do que fizera antes. Todavia, a partir de então, comecei a desconfiar de que tinha alguma coisa muito esquisita naquilo tudo.
            Estava ali começando a nascer o gérmen do ateísmo que viria a colar em mim para sempre quatro anos mais tarde pouco depois da Crisma precisamente no momento em que comecei a ler Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis.
            Me senti ridícula rezando aquelas orações clássicas por tão vã confissão.(Criminosa eu não era menos ainda minha prima). Além do quê, somente pelo pecado da “teimosia” do mesmo modo não ganhava sentido rezar tanto.
            Eu tinha consciência, de longas e solitárias jornadas de leituras, que o namoro entre pré-adolescentes não poderia ser considerado uma transgressão.
            A sociedade puritana e careta pensava o contrário, mas o amor era imprescindível.
            A partir de então, passei também a ter certeza de que a palavra deveria possuir uma força para além de sua (mera) repetição, coisa que eu já verificava no âmbito da poesia.
            Adeus Igreja Católica! Ponto final.

*Luciana Martins é professora e poetisa, mora em Brasília

lucianasousamartins@gmail.com



(TB
13abr2014/nº125)

 

Artigo
Hiroshima mon amour
jornal Turma da Barra

 

"Hiroshima, mon amour", 
nos proporcionou a oportunidade de conhecer o que é a perfeição.
            Esse filme, obra-prima entre as obras-primas do cinema, fica para a história como uma das coisas mais bonitas que a humanidade pôde ver!"

*Luciana Martins

            Nesse sábado (1º) de carnaval Alain Resnais morreu na França aos 91 anos. Viveu bastante esse cineasta que, tendo feito um filme como "Hiroshima, mon amour", nos proporcionou a oportunidade de conhecer o que é a perfeição.
            Esse filme, obra-prima entre as obras-primas do cinema, fica para a história como uma das coisas mais bonitas que a humanidade pôde ver!.
            Mas a beleza costuma vir associada à tristeza na arte. E essa é uma história tristíssima — tristeza e beleza na mesma proporção.
            Sem entrar na questão da técnica do filme pela qual Alain Resnais, nesse que foi seu primeiro longa-metragem (de 1959), também se destacou, relato aqui o enredo do filme.
            Trata-se do encontro de uma atriz francesa casada - que vai a Hiroshima participar de um documentário sobre os efeitos da bomba atômica atirada naquela cidade(e em Nagasaki) anos antes — e um arquiteto japonês também casado. Os dois não têm nome próprio, são simplesmente Ela (Emmanuele Riva, estupidamente bela) e Ele (Eiji Okada), o que imprime universalidade à história de amor que vivem esses personagens.
            O ano é 1957. Eles se encontram nos dois dias finais da filmagem do documentário. A esposa de Ele está viajando, então ele a leva para a sua casa onde os ambos iniciam um no outro o seu mergulho.
            Além do horror da guerra explicitamente relembrado nas ruas, museus e praças de Hiroshima, por onde as pessoas carregam cartazes de protesto contra a tragédia que ali se vive cotidianamente por causa das seqüelas deixadas naquela população (até que ponto esses protestos são do documentário filmado dentro do filme e até que ponto aconteciam de fato naquele momento em Hiroshima é uma ambigüidade de "mise-en-abyme" bem interessante), além deste, vamos conhecer outro horror por meio das lembranças que Ela relata a Ele e que dizem respeito à sua história de amor com um oficial alemão em plena Segunda Guerra, vivida quando ela tinha apenas 18 anos de idade numa cidadezinha da França (Nevers) onde morava com sua família...
            Esse flashback é um dos pontos altos do filme por mostrar que a guerra engendra pequenas (mas incontáveis e terríveis) tragédias individuais juntamente com a coletiva. A moça é quase linchada pela população quando descobrem seu caso de amor; arrancam-lhe os cabelos e a família a aprisiona em um porão da casa de onde ela só sai, fugindo pra sempre da cidade, no dia da morte, ali perto, do oficial alemão (talvez ele a estivesse procurando).
            Tal fato do passado se atualiza neste presente em que guerra e amor se interpenetram de forma angustiante na medida em que parece que o fim da história de Ela e Ele também está anunciado pela impossibilidade de realização daquele desejo a não ser no momento vivido e jamais no futuro.
            A atmosfera vertiginosamente poética do filme é dada não somente pelas imagens filmadas por Alain Resnais e pela maestria dos atores envolvidos (isso sem falar na trilha sonora e na direção de fotografia!). É que o roteiro e os diálogos do filme saíram dos dedos mágicos de Marguerite Duras.

            Inesquecível! A vida real somente vale se há filmes com esse...

*Luciana Martins é professora e poetisa, mora em Brasília

lucianasousamartins@gmail.com



(TB
11mar2014/nº124)

 

Artigo
Novidades
jornal Turma da Barra

 

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,[...]
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de frete, [...]
Eu, que tenho sentido a angústia das pequenas coisas ridículas,[...]
Fernando Pessoa

*Luciana Martins 

            O mundo contemporâneo tem invenções estranhas, quase esdrúxulas.
            Não é que agora criaram o personal-friend no Brasil? E atentem para o fato de não haver tradução para o termo – afinal baixamos de vez as calças para o idioma estrangeiro: a lista de termos compostos com “personal” é infinita e vai até onde nosso bolso consumista pode pagar.
            “Amigo de aluguel” não soaria tão chique como “personal-friend’, deve ser o que pensam tais profissionais que preferem autodenominar-se em inglês.
            Aliás, a bem da verdade, não “acabaram” de criar esse negócio. Isso já é novidade antiga, do final de 2006. Eu é que sou desinformada e não percebo o “avanço da civilização” a tempo de não ser pega de surpresa com tanta frequência.
            É ainda recente, também, a descoberta que fiz do personal-dancer. Este profissional em ação eu mesma testemunhei num clube brasiliense, meses atrás, na festa de forró em que fui com uma de minhas irmãs e amigos.
            Verifiquei que a mesa ao lado da nossa estava cheia de mulheres de meia-idade e de rapazes bem mais jovens. Primeiramente imaginei se tratarem ali de tias acompanhadas de seus respectivos sobrinhos. Depois percebi que estranhamente os sobrinhos agarravam bem forte as tias na hora da contradança. Notando meu espanto discreto, a amiga de minha irmã me explicou: “São rapazes contratados, Luciana.”
            “Nossa, como estou por fora”, pensei. Aluga-se um par para dançar a noite toda, mas, com toda aquela intimidade, pelo visto, depois o par é levado para o apartamento e presta serviços sexuais à contratante que acompanhou – “Garotos de aluguel” ou “moços de frete” (no dizer elegante de Fernando Pessoa, que, na verdade, significavam o que hoje chamamos de “boys”, rapazes que fazem serviços de leva-e-traz, paus-para-toda-obra ).
            Voltando ao personal-friend, descobri sua existência um dia desses, ao assistir a uma matéria a respeito da nova profissão no Estúdio i, programa de variedades da “Globonews”. O rapaz entrevistado, que vive disso, pareceu bastante sério no que dizia, e procurou deixar claro que não se deve confundir personal-friend com “acompanhante”, porque este último já traz o estigma de alguém que proporciona encontros eróticos.
            Ainda assim, como procuro não ver com preconceito tanto em “acompanhantes” quanto em prostitutas, quero me comportar da mesma maneira no que tange ao personal-friend. Mas me preocupo com o que pode representar sociológica e moralmente esse tipo de trabalho remunerado.
            Ressalte-se que o preço cobrado para um encontro de cerca de uma hora (como numa sessão de terapia) chega ao valor de R$ 300,00 (trezentos reais), havendo aqueles e aquelas que cobram mais barato, mas nem tanto (R$ 50,00 é o mínimo), o que nos leva a crer que pobre de marré- marré jamais vai pagar alguém para se fazer ouvir ou ser aconselhado.
            O debate sobre o que vem a ser a verdadeira amizade remonta à Antiguidade. O romano Cícero (nascido em 106 a.C), por exemplo, escreveu um diálogo intitulado “Da amizade”, de onde retiro a seguinte questão: “Que coisa tão doce como ter um com quem falar de todo tão livremente como consigo mesmo?” Um encontro de almas como esse se dá evidentemente com raridade, mas acontece.
            Tento imaginar até que ponto tem razão o personal-friend que justifica seu labor com o argumento de que “é difícil as pessoas se abrirem, sempre há algum interesse nas amizades e uma imagem a manter” (citado por Larissa Coldibeli, no texto “Amizade tem preço” em http://www.siteselinks.com.br/amizade-tem-preco.htm ) .
            Esse tipo de justificativa me deixa um tanto assombrada porque implica o pressuposto de que sempre está em jogo o oportunismo e a manutenção de falsas aparências nas relações amicais. Se isso fosse verdade (e Machado de Assis não pestanejaria em afirmar que o é), não haveria amizades puras, desinteressadas, platônicas.
            Quero crer que, no fundo, quem deseja encontrar a amizade são os personal-friends. Deveriam, portanto, passar a ser chamados de “caçadores de amigos”, ou, para permanecer na língua franca atual: “friend-hunters” .

*Luciana Martins é professora e poetisa, mora em Brasília
lucianasousamartins@gmail.com



(TB
17abr2011/nº123)