Artigo
A estrada parecia não ter fim
jornal Turma da Barra

 


Lu Mota

 

"A tapera estava de pé,  ladeada por escombros.  Mato entrando nas rachaduras das paredes,
parecia dizer-me que ali não tinha mais ninguém. Que tudo ali tinha partido e se ainda restava algo daquele lugar, devia ser apenas saudade no coração de alguém."

*Lu Mota

                A estrada parecia não ter fim. Ora alargava se, ora ficava íngreme. Às vezes ladeada por árvores, capim, pés de banana... Frutas conhecidas e outras nem tanto. Havia um universo novo naquele lugar tão belo, quase Santo. Ouvir uma sinfonia de sons no barulho das folhas que cantavam ao se encontrar se como o vento...

            Passei debaixo das antigas arvores que agora se agigantavam sobre a estrada de terra. A sombra das arvores se misturavam com a sombra das lembranças vadias que moravam em  minha memória.  Era difícil olhar para os dois lados e por isso fui  devagar, pela beiradinha da estrada para não atrapalhar caso alguém também estivesse passando por ali. Mas não! Ninguém passou e isto me deixou em um estado de solidão permanente que foi se agigantando quanto mais eu me distanciava da Cidade rumo ao meu antigo endereço. Ouvia sons vindos do nada. Ecos de minha infância, retratos de minha solidão. Pedaços de vida tão bem guardados. Quase esquecidos em um cantinho da memória, como em um relicário...

            Meu coração foi acelerando, minha respiração foi ficando entrecortada. Olhei para o lado esquerdo, lá na frente. Ainda bem longe.  A distancia parecia aumentar e chegar ali parecia impossível. Parei o carro alguns minutos  mas achei que minha eternidade tinha sido vivida ali, naqueles momentos fugidios que meu olhar  contemplou  minha antiga  casa, agora somente uma  tapera velha... Mas tão linda. Tão conhecida, tão minha. Encontrar minha casa era como u  pequeno riacho desaguando no mar. Perder se como rio para virar oceano... Não sei quanto tempo fiquei ali, inerte diante do mato seco que quase a cobria...

            Atravesse lentamente  a rua estreita de areia, parei no primeiro degrau do que outrora fora uma escada e agora era somente pedaços de barro ressequido pelo sol e deteriorado pela ação do tempo. O mesmo tempo que me manteve longe daqui.  Subi a calçada alta de barro e cheguei  na porta larga de madeira velha, desbotada, rachada, quase emoldurada  por duas janelas grandes, despencando das paredes rachadas e caindo para dentro dos cômodos da casa, em demonstração clara do desgaste que o tempo e o abandono faz.

            A tapera estava de pé,  ladeada por escombros.  Mato entrando nas rachaduras das paredes, parecia dizer-me que ali não tinha mais ninguém. Que tudo ali tinha partido e se ainda restava algo daquele lugar, devia ser apenas saudade no coração de alguém. Sim no meu coração! E quanta saudade... Uma saudade dessas que dói só de imaginar a dor. Dessas que desaguam em nossos olhos de maneira incontida,  como correnteza depois de um remanso.   Da frente dava para ver lá no quintal, o pé de caju que nos deu tantas vezes o alimento que nos salvou da fome. Comíamos não por ser exótico  ou nutritiva e sim porque a morte da  fome só  encontrava guarida naqueles galhos tortos cheios de maturís que na pontinha de  sua extremidade carregava  deliciosas castanhas....

            Abri a porta lentamente segurando a para não despencar. Entrei pisando no chão ressequido e cheio de rachaduras...  Caminhei  pelo lugar que antes era o caminho do quarto... Lá não tinha porta, só o portal... Pus a cabeça naquele lugar cheio de teia de aranha e fiquei ali paralisada. A lembrança era muito viva, a memória doía, a saudade dos meus, dos dias vividos ali... Meu corpo estremeceu de dor e saudade. Amparei meu corpo numa escora que  tinha no canto segurando a parede...ouvi:

Fui à Espanha, buscar meu chapéu, azul e branco, da cor daquele céu....

Olha palma, palma, palma,

Olha pé, pé, pé,

Roda,  roda caranguejo, caranguejo peixe é.

Caranguejo não é peixe, caranguejo peixe é.

Caranguejo só é peixe na enchente da maré.

Samba crioula, que vem da Bahia,

Pega a criança

E joga na bacia.

A bacia é de ouro, areada com sabão,

E depois de areada, enxugada com roupão.

O roupão é de seda, camisinha de filó,

Sapatinho de veludo para quem ficar vovó...

- Foi você, você ficou vovó.

- Benção vovó, Benção vovó...

- não, não fiquei!  Vocês  sempre me deixam...

            Sentei-me no chão ainda molhado da chuva que tinha caído de tardezinha e meu olhar alagado de lágrima se confundiu com a chuva que voltava fininha... Caminhei rápido para minha casa e no caminho pensava; Porque todos  tem janta, roupas, brinquedos? Porque eu não tenho um caderno, um livro? Queria ler... Queria escrever...

- Mãe!  Mãe! Já cheguei...

-Sim, vá lavar os pés e se deitar. Cuidado! Não vá bater nas coisas. Não tem querosene e por isso já apaguei a lamparina, mas venha logo. Deite em sua rede.

- Já vou mãe.

- Já vou dormir...

Puxei o pano que servia de porta, entrei tateando a rede dos meus irmãos, achei minha rede do lado da cama de minha mãe. Junto com ela meus dois irmãos mais novos.  Não tinha rede para todos...

Deitei- me e fiquei ali no escuro, passando o pé na costura dos remendos da rede...

Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco. Bendita sois vós entre as mulheres e Bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus...

- Bença mãe!

-Deus te abençoe.

            Dormi como dormia quase todas as noites de minha infância, sem luz, sem roupa, sem livros... Sem comida.  Dormia só para sonhar com a vida longe dali . Distante da fome.

            Abri os olhos marejados de lágrimas. Uma saudade latente rasgava meu peito.  Já estava quase tateando pelos cantos da casa de tanta dor de saudade e de tantas lembranças tão vivas. Gritando em meu ouvido e trazendo  um burburinho de sentimentos que eu não conseguia identificar... Na tentativa de respirar segui rumo a antiga cozinha. O fogão de barro continuava ali.  Estático.  Como se alguém tivesse atravessado a rua e ido na casa da vizinha pedir açúcar emprestado. Teias de aranha em suas rachaduras que pareciam tanto com minhas lembranças.  Olhei o peitoril e por momentos senti uma presença suave, uma brisa cheirosa como mato verde, como folha arrancada do talo... Era o cheiro do meu pai... Fechei os olhos.

- Maria, Maria. O pai chegou! Venha cá puxar as perneiras do pai.

- Já vou...

Corri e puxei  as pernas da calça de couro que os vaqueiros usam para se proteger dos espinhos quando vão campear.

Puxei, puxei e enfim consegui.  Pulei no colo do pai, que me encheu de xeros e de cócegas na barriga gordinha e branquinha.

- Pai, o que você trouxe para mim?

- Hoje eu trouxe Tuturubá.

- Eba! Que bom! Tão madurinho?

- Sim, estão no ponto.

- Deixe eu pegar pai, deixe.  Disse  isso e já fui  colocando a mão no gibão da camisa de couro que fazia par com a perneira. Enchi  a mão com os frutos.

Tuturubás  amarelinhos, gostosos... E o cheirinho de folhas no gibão.

- ai onde você encontrou esses tuturubás? Já tá no tempo? Porque não trouxe pequi ?

- Não tem pequei ainda minha filha.  O tempo de pequi ainda vai demorar. Vai lá, divide as frutas com seus irmãos.

- Mãe, mãe, chame os meninos, o pai trouxe tuturubá. Olhe como estão bonitos. Vou chama os meninos.

- Vai, eles estão lá na cozinha...

            Segui pela velha cozinha e tateei as paredes como se elas pudessem me devolver as pessoas que ali viveram dias comigo. Meus irmãos que dividiram dias de tanta tristeza  sofrimento causados pela fome, e tantas brincadeiras típicas de irmãos que se amam e se irmanam na alegria e na dor.

            Subi dois batentes e encontrei  me na  sala dois degraus acima da cozinha.  A falta de porta era  como um convite para eu entrar.  E eu entrei!  Devagar, quase tateando, buscando  meus retrato desenhado nas rachaduras das paredes que já  não suportavam mais os gomos de barro. Acho que não era só o peso do barro, junto com os torrões, também o peso da saudade. No canto esquerdo, escondidinho estavam ainda os restos de alguns nomes que riscávamos quando o barro estava fresco. As letras estavam caindo com os torrões de barro. Vi três letras de um nome, as letras denunciavam o nome. Ao lado delas, disforme, um coração denunciando um amor retratado.  O coração estava aos pedaços, como o meu.

            Olhei bem as letras, passei meus dedos no coração, apalpei a parede fria, não me contive  e chorei.

- Eu vou embora, mas não se preocupe, eu volto. Virei te buscar e nunca mais nos separaremos. Ficaremos juntos para sempre...

- Eu sei, prometo te esperar por todos os dias de minha vida. Já nos pertencemos e jamais seremos completos separados...

- Adeus.

- Até daqui alguns dias...

            Nos emaranhados de madeirinhas finas e cipó quase nada mais restava. Era somente uma tapera me levando a um tempo de passado tão longínquo porém,  tão vivo batendo ali no meu peito, e na janela despencada que pendia para o lado onde o sol me permitia ver o pé de manga.

            Olhe entre as folhas da mangueira rumo ao céu azul. Flashes de minha vida caiam entre aqueles galhos que outrora me serviram de sombra.

- Nasceu, é uma menina linda.

Filha, Deus vai te abençoar por todo o sempre.

- Gravida? Não acredito! Eba..

- Bebe lindo do papai.

- Um dia voltaremos lá.

- Como? Não! Diga que não é verdade! Eu não quero viver só. Não posso...

Tudo ficou escuro, tudo rodou.

Ouvi passos e foi doloroso voltar a realidade de estar ali vivendo aquelas emoções e ter que me despedir de novo.

Voltei ao presente e desde então aquelas memórias estão em um lugar sagrado; dentro do meu coração.

Lá é lugar seguro.

*Lu Castro é barra-cordense e migrou para São Paulo em 1979. Artista plástica, atriz, clown doutora da alegria, contadora de histórias, educadora , artesã e poeta.

Artigo
Caos na rodoviária
jornal Turma da Barra

 

A barra-cordense Lu Mota, que é do Sujapé,
conta como foi a viagem de Barra do Corda a São Paulo, em dezembro de 1979:
"
Quando chegar me espere e não tenha medo. Eu estarei te procurando. Não saia do lugar do desembarque.
Estou ansioso para conhecer nossa filha que eu já amo mais que a minha vida.
Assim como amo você.  Até daqui uns dias. Boa viagem e venham com Deus!
"

*Lu Mota

       Desembarquei e o burburinho me ensurdecia. Era tanta gente indo e vindo. Andado de um lado para outro como se a busca incessante estivesse sempre do lado contrário as outras pessoas. Gente carregando malas enormes, sacos cheios de todo tipo de bagagem. Um caos enlouquecido. Informação demais para quem nunca tinha saído de uma pequena cidade do interior.
       São Paulo. 1979. Frio. Medo. Uma menina com outra menina. No colo! Mãe e filha perdidas na multidão de uma rodoviária lotada de pessoas que se aglomeravam no dia de Natal. 25 de dezembro...O medo de não ser encontrada naquela multidão me trazia arrepios que dificilmente eu saberia se era do frio ou de ansiedade. Afinal era dezembro e nessa época do ano o clima é mais quente. Eu ainda não sabia que o clima em São Paulo é variável e pode fazer frio, calor e até gear em um único dia. Mesmo em dezembro. Mesmo no dia 25 de dezembro.Era Natal, mas eu nem entendia que era a maior festa do ano. Não sabia que essa data era tão significativa. Lá na minha pequena cidade eu apenas conhecia esse dia como o dia que tinha a missa da meia-noite. E que nesse dia os jovens usavam roupas e sapatos bonitos para passear na praça da Matriz. Mas eu não pertencia a esse mundo. Não tinha a roupa e nem os sapatos, nem novos e nem velhos... Eu não tinha sapatos!
       A multidão caminhava enlouquecida uns chamando os outros como se estivessem sempre atrasados. Mães carregavam crianças de colo. Como eu. No meu colo minha filha assustada, como eu. Devia pressentir que estávamos sós em um mundo que não era o nosso. Em uma cidade que nunca tínhamos visto a não ser na Tv que um dia vimos na janela da casa e uma família que morava do lado da praça da Matriz. Janela grande, aberta. Por ela eu vi uma Tv enorme, de madeira marrom, cantos arredondados. Imagem preta e branca.  Atores que eu já tinha visto nas revistas que minha tia escondia de mim e eu lia escondido no quarto de guardar farinha, da casa do meu avô. A Imagem era chuviscada mas  eu achava que era normal, afinal eu nem sabia mesmo o que era aquilo. Só sei que me deixou encantada. Era como se o mundo estivesse ali, naquela TV. Dentro de mim eu falei: Um dia vou morar nessa cidade. Era Sampa! Os transeuntes continuavam o vai e vem descontrolado. Todos tinham pressa. Todos buscavam por amigos, parentes ou algum rosto conhecido. Uns chegavam assustados como eu. Outros buscavam assustados os seus que ainda não haviam chegado. Olhava aquelas pessoas e meu pensamento me levava em flashes contínuos para as coisas que eu deixei. No meu colo minha filha dormia indiferente ao caos e ao frio. Coberta com um lençolzinho branco que lhe aquecia o corpo.
      Lembrei do meu irmão chorando copiosamente na minha despedida da cidade. O ônibus corria e em cada curva de rua estreita, estava meu irmão me dando tchau e chorando. Como doía o choro do meu irmão ao despedir se de mim. Aquele choro ainda ecoava em meus ouvidos. Um abraço apertado entre soluços entrecortados por palavras de carinho. Meu irmão... Meu irmão... Meu irmão... Comecei a ficar ansiosa e o nervosismo já estava aparente. Era muita informação para um olhar acostumado a calma. Abraçada a minha filha era difícil cuidar de malas, sacolas e bolsas. Sentei-me em um canto e lá fiquei por eternidades contadas em exatos noventa minutos... Nessa hora e meia veio toda minha existência em minha memória. - Uma casa perto do rio, ladeada por árvores grandes. Quintal sempre varrido, um caminho que termina no rio... Crianças desciam correndo e se jogavam no rio de águas limpas e claras de correnteza. Crianças, curumins...
       Misturavam se na dança que a correnteza impõe a quem quer equilibrar se em um único lugar na água...As crianças subiam no enorme pé de Ingá e pulavam virando pirueta até cair na água e ver a cascata de pingos que saiam da correnteza. Era um espetáculo. Na rodoviária as pessoas continuavam a busca que mais parecia uma dança, um ballet em um teatro mágico onde a  modernidade dos passos quase se chocam, mas sabem desviar se de todos que se trombam no palco da procura pelo outro....Via aquelas pessoas e não conseguia parar de pensar; porque correm tanto? Por que não andam devagar? Demorei muito a entender que em Sampa tudo tem pressa, tudo tem que ser rápido, tudo precisa ser pra ontem. Minha filha abriu seus grandes olhos pós-sono, parecia que me indagava onde estávamos. Eu sentia que ela me perguntava do pé de manga onde ela dormia em sua redinha nas manhãs após o banho na grande bacia de alumínio. Parecia que me perguntava sobre os tios que não a deixavam um minuto e alegravam se com suas risadinhas de bebe. Cabelinho ralo, típico dos bebês. Dei lhe o brinquedinho que trouxemos durante os três dias de viagem para que se entretece. Ela pegou, esboçou um sorrisinho pálido e continuou seu sono inocente.Já fazia uma hora que eu estava ali, sentada no mesmo cantinho, imobilizada pela falta de alguém para cuidar do meu bebe enquanto eu fizesse algo. Não podia soltar o meu bebe. Lembro de minha mãe sempre dizendo; Não saia nunca de perto da sua filha, não deixe com estranho, se alguém vier falar com vocês não converse muito. Olhe que estão roubando crianças...
       Essas lembranças  confrontada com a realidade dos transeuntes que disputavam palmo a palmo aquele espaço iam me tirando o fôlego. E se ninguém fosse me buscar?  Se eu ficasse ali esperando e nunca fosse encontrada? Levantei-me na intenção de ser vista, de ser enxergada por quem me procurasse. Deixei minha filha deitadinha em cima da mala, indiferente ao caos. Abri a bolsa verde, peguei um papel, li o endereço ali escrito. Fiz sinal para um taxista que passava com uma sacola grande na mão. Ele parou e eu lhe perguntei sobre o endereço. Disse que conhecia, que nem era longe.
      Esqueci dos conselhos de nunca falar nada para ninguém e disse lhe que estava com medo porque ainda não tinha encontrado a pessoa que ia me buscar. Ele respondeu indicando um lugar e disse-me que se a pessoa não chegasse, ele estava ali, do outro lado da rua e que era só fazer um sinal que ele viria buscar minhas coisas e me ajudar, e que o endereço era fácil.Fiquei mais tranquila, mas ainda apreensiva. Ao guardar o papel com o endereço encontrei um envelope. Nele uma carta escrita com uma letra bonita.
       Passei os olhos nelas e li algumas frases meio soltas. - Quando chegar me espere e não tenha medo. Eu estarei te procurando. Não saia do lugar do desembarque. Estou ansioso para conhecer nossa filha que eu já amo mais que a minha vida. Assim como amo você.  Até daqui uns dias. Boa viagem e venham com Deus! Respirei e uma alegria gostosa esquentou minha manhã fria. Senti uma leveza que me resgatava do peso do medo de estar só.  Olhei longe e vi um rosto conhecido, querido.  Um rosto amado!  Não dava para precisar quanto tempo ficamos separados. Só sabia que agora estava ali na minha frente e eu já não era uma menina. Era uma mulher, uma menina mãe de outra menina. Perdemos a voz porque não tinha o que dizer, não podia falar. Tínhamos tantas palavras para serem ditas!  Tanta história para contar... Viagem, gravidez, parto, trabalho, caminhos, vidas, choro de criança, caos, medo, solidão, angústia, fé, procura, família, abandono... Ele se abaixou, chamou nossa filha pelo nome e disse; Filha, é o papai. Ela riu um risinho tímido. Ele a pegou no colo e ficaram abraçados por eternidades. Sentindo a emoção do momento abracei os também. Não sei quanto tempo durou aquele abraço. Mas a partir dali eu sabia que não estaria mais sozinha.
       Multidão, malas, sacolas, taxistas, carros, barulho, vai e vem de pessoas, café amargo, crianças, lembranças, medo, solidão. Rodoviária do Glicério. São Paulo. 25 de dezembro de 1979.

*Lu Castro é barra-cordense e migrou para São Paulo em 1979. Artista plástica, atriz, clown doutora da alegria, contadora de histórias, educadora , artesã e poeta.

(TB30set
2015) 

Artigo
A volta
jornal Turma da Barra

 


Lu Mota

 

"Na procura pelo meu passado me deparei com uma das antigas casas que morei. 
Para minha surpresa a casa está lá. Imbatível. De pé. Imóvel. Retrato fiel das lágrimas choradas pelo amor que partiu em destino que um dia eu também iria seguir. 
Não me contive. Sentei no chão e chorei"

*Lu Mota

            Tum,Tum, Tum... Bate coração. Acelerado. Descompassado... Dias, meses, anos. Tantos anos...
            Mudou tudo, acho que até as estações... Mas meu amor por esta cidade não mudou, ao contrário, cresceu e hoje o sinto saindo do meu peito escorrendo pelos meus olhos. Lágrimas de saudades misturadas com risos alegres e descompassados pelo reencontro com meu torrão amado.
            E sigo com o olhar de busca explorando cada casa nova, cada rua nova, cada comercio. A busca pelos antigos moradores é impossível de ser evitada. Alguns ainda estão lá, no mesmo lugar, como se estivessem plantados, assim como algumas arvores, arbustos que persistem em me contar historias do meu passado tão longínquo e que agora grita aqui na minha garganta com o nome de presente. Presente dado de presente como se fora uma recompensa pela resistente luta de ter aguentado tanto tempo sem voltar.
            Trinta e quatro anos longe daqui. Uma vida... A minha vida. Sai daqui menina, já mãe de uma menina. Hoje a menina se transformou em mãe, e eu aqui, mãe-avó me transformo em menina e me vejo de novo no passado...
            Brincando de pular corda debaixo do pé de jatobá, lá no sitio. Passar anel lá no banco dos dois pés de manga da casa do Dorgival. A viagem para a casa do seu Neném e Dona Nerina para assistir tv e voltar todo dia depois da novela das 19;00h sempre buscada pelo meu pai. Beiju, Cuscuz de arroz com café, chá de burro no mercado. Coração palpita mais forte diante do novo. Do diferente, inusitado. As distancias hoje não existem mais. Tudo esta a mão, bem aqui, logo ali, bem acolá.
            Começo a busca por conhecidos. Faço outro tanto de novos conhecidos. Perambulo pelos mercados -no plural porque agora temos o mercado da Trezidela - Lá encontro velhos amigos, alguns trabalhando, inseridos naquele burburinho de pessoas que se aglomeram vendendo e comprando de tudo, desde o jerimum ate a pimenta de cheiro que não pode faltar em um maravilhoso peixe. -Mas eu prefiro em arroz misturado com feijão novo.
            Depois, com os olhos já acostumados as novidades, ouso sair em direção ao meu passado mais dolorido; meus familiares... A casa do meu avô está no chão, em seu lugar nova construção e como lembrança viva e palpável só um monte de tijolos da casa de farinhada. Foi difícil sair dali. Uma força maior me prendia aquele chão...
            Na procura pelo meu passado me deparei com uma das antigas casas que morei. Para minha surpresa a casa está lá. Imbatível. De pé. Imóvel. Retrato fiel das lágrimas choradas pelo amor que partiu em destino que um dia eu também iria seguir. Não me contive. Sentei no chão e chorei. Minhas lágrimas se misturaram com o suor do rosto em dia de calor, e foi o rosto alagado que me trouxe de volta ao presente. - Não chora não Lurdinha, tudo já passou. - Era a mão de minha amiga me trazendo de volta a realidade que ainda me diz em cada letra que escrevo que eu vivi um sonho. O sonho de voltar aqui em meu torrão, onde o banho não lava só o corpo, lava também a alma e o coração. Enche a vida de cores, energiza o espirito e da força para seguir.
            Me curvo aos teus rios, aos teus encantos, aos teus filhos. Ao nosso maior bem, nosso amor por ti minha Senhora, minha amada Barra do Corda, amor de minha vida.

*Lu Castro nasceu em Barra do Corda em 1960 e foi para São Paulo em 1979. Artista plástica, atriz, clown doutora da alegria, contadora de histórias, educadora , artesã e poeta.


(TB
25jan2014)