Carlos Drummond de Andrade
(1902 – 1987)

20 anos sem Drummond

jornal Turma da Barra

 

por Heider Moraes


            Na sexta 17, fez 20 anos da morte do poeta Carlos Drummond de Andrade. Ao lado do maranhense Gonçalves Dias e dos portugueses Luiz Vaz de Camões e Fernando Pessoa, formam o quarteto maior dos poetas da língua portuguesa.
            Drummond nasceu na mineira cidade de Itabira em 1902, mas viveu a maior parte da vida no Rio de Janeiro. Foi funcionário público e jornalista.
            Ao falecer vítima de enfarte aos 85 anos, deixou uma vasta obra poética, também de crônicas. Ele que pretendia ser eterno e moderno, conseguiu mais do que isso: continua atual e contemporâneo neste século 21.
            Para se entender a grandeza de Drummond, disse Hélio Pelegrino: “Eu não me entenderia direito sem a poesia dele.” Acrescentaria o também poeta Freitas Filho: “a obra de Drummond é maior que o Brasil”.
            Em um dos vestibulares da UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro - essas frases de Hélio Pelegrino e Freitas Filho foram usadas como tema de redação: “O legado de Carlos, hoje, é este: ‘eu não me entenderia direito sem a poesia dele e sua obra é maior que o Brasil”.
            Numa simples homenagem ao poeta, o TB selecionou três poemas e uma crônica: O primeiro é “Procura de poesia”; publicado no livro “A rosa do povo”. O segundo, “Mãos dadas”, publicado no livro “Alguma poesia”. O terceiro poema é “A máquina do mundo”, publicado no livro “Claro enigma”, considerado como o melhor poema brasileiro de todos os tempos por um grupo de escritores e críticos, a pedido do caderno “Mais” (janeiro de 2000), publicado aos domingos pelo jornal Folha de São Paulo.
            Entre as crônicas, o TB publica “Depois do jantar”, a última que ele escreveu antes de falecer, faz parte do livro “Os dias lindos”.

Procura da poesia
Carlos Drummond

 “Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.”

 

Mãos dadas
Carlos Drummond

“Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.”

A Máquina do Mundo
Carlos Drummond

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

 

Crônica
Depois do jantar
Carlos Drummond

            Também, que idéia a sua: andar a pé, margeando a Lagoa Rodrigo de Freitas, depois do jantar.
            O vulto caminhava em sua direção, chegou bem perto, estacou à sua frente. Decerto ia pedir-lhe um auxílio.
            — Não tenho trocado. Mas tenho cigarros. Quer um?
            — Não fumo, respondeu o outro.
            Então ele queria é saber as horas. Levantou o antebraço esquerdo, consultou o relógio:
            — 9 e 17... 9 e 20, talvez. Andaram mexendo nele lá em casa.
            — Não estou querendo saber quantas horas são. Prefiro o relógio.
            — Como?
            — Já disse. Vai passando o relógio.
            — Mas ...
            — Quer que eu mesmo tire? Pode machucar.
            — Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa fivelinha enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude.
            O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio mudou de dono.
            — Agora posso continuar?
            — Continuar o quê?
            — O passeio. Eu estava passeando, não viu?
            — Vi, sim. Espera um pouco.
            — Esperar o quê?
            — Passa a carteira.
            — Mas...
            — Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada sozinho, nessa idade?
            — Não é isso. Eu pensava que o relógio fosse bastante. Não é um relógio qualquer, veja bem. Coisa fina. Ainda não acabei de pagar...
            — E eu com isso? Então vou deixar o serviço pela metade?
            — Bom, eu tiro a carteira. Mas vamos fazer um trato.
            — Diga.
            — Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil.
            — Engraçadinho, hem? Desde quando o assaltante reparte com o assaltado o produto do assalto?
            — Mas você não se identificou como assaltante. Como é que eu podia saber?
            — É que eu não gosto de assustar. Sou contra isso de encostar o metal na testa do cara. Sou civilizado, manja?
            — Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o dinheiro. Ele me faz falta, palavra de honra.
            — Pera aí. Se você acha que é preciso mostrar revólver, eu mostro.
            — Não precisa, não precisa.
            — Essa de rachar o legume... Pensa um pouco, amizade. Você está querendo me assaltar, e diz isso com a maior cara-de-pau.
            — Eu, assaltar?! Se o dinheiro é meu, então estou assaltando a mim mesmo.
            — Calma. Não baralha mais as coisas. Sou eu o assaltante, não sou?
            — Claro.
            — Você, o assaltado. Certo?
            — Confere.
            — Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são só dois mil.
            — Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos. Veja se tem mais dinheiro na carteira. Se achar uma nota de 10, de cinco cruzeiros, de um, tudo é seu. Quando eu confundi você com um, mendigo (desculpe, não reparei bem) e disse que não tinha trocado, é porque não tinha trocado mesmo.
            — Tá bom, não se discute.
            — Vamos, procure nos... nos escaninhos.
            — Sei lá o que é isso. Também não gosto de mexer nos guardados dos outros. Você me passa a carteira, ela fica sendo minha, aí eu mexo nela à vontade.
            — Deixe ao menos tirar os documentos?
            — Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas rachar com você, isso de jeito nenhum. É contra as regras.
            — Nem uma de quinhentos? Uma só.
            — Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus. Mas nem isso você precisa. Pela pinta se vê que mora perto.
            — Nem eu ia aceitar dinheiro de você.
            — Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita gente neste mundo. Bom, tudo legal. Até outra vez. Mas antes, uma lembrancinha.
            Sacou da arma e deu-lhe um tiro no pé.