Reportagem
Matias, o leproso
que virou santo

jornal Turma da Barra

 


Porta de entrada do Cemitério do Matias

Por Álvaro Braga


            Matias Oliveira era seu nome. Era pai do Leontino Cardoso de Oliveira, trabalhador filiado ao Sindicato dos Estivadores durante muitos anos.
            Matias foi casado com dona Isabel, que era meio índia guajajara e meio cigana, e que ainda vive em Santarém, estado do Pará. Tiveram três filhos, sendo dois homens e uma mulher. A menina morreu assim que nasceu, e o filho Pedro foi criado pelo senhor Bitonho, e morreu de sarampo em tenra idade. Leontino foi criado pelo finado Jonas e por Jovina Bé, sendo dado em seguida ao senhor Joaquim Silvério para que este o criasse.
            Matias veio de Caxias para Barra do Corda no final dos anos 30 e por aqui viveu até sua morte, no inícios dos anos 50. Conta Ruben Fialho, que o conheceu bastante para afirmar com segurança que ele não tinha lepra, mas sim, câncer de pele. Naquela época a lepra era doença incurável, das mais contagiosas e o preconceito em relação à doença era muito grande. A pessoa era segregada e afastada do meio social, não importando sua condição econômica. À exceção de uns poucos, os outros se afastavam.
            Doca Ferreira relembra que Matias chegou no final dos anos 30, e foi morar numa casinha isolada no porto do Pintinho.
            No final da rua Isaac Martins, na Altamira, onde atualmente fica o prédio do INSS, havia um grande cajual e uma antiga casa, na qual morou uma senhora conhecida apenas como “Velha Hora”. Dona Hora, que abrigou Matias para cuidar de sua enfermidade, chegava a pedir esmolas para que não lhe faltasse alimentação.
            Dona Isabel, já viúva de Matias, uniu-se ao senhor Jerônimo e teve com ele quatro filhos antes deste vir a falecer.
            Naquela época, final dos anos 40 e início dos anos 50, praticamente não haviam casas no bairro Altamira, sendo esta, coberta por uma vegetação conhecido como “carrasco”, para além da pista do velho Aeroporto da CANM – Colônia Agrícola Nacional do Maranhão. Aquele local era o preferido pelos meninos da cidade para irem atrás de caju e goiabirabas.
            Seu Davi, vulgo Pau Pubo, conta que gostava de ver como estava o Matias junto com seu inseparável amigo Piracicaba e aproveitavam para trazer um saco de “jatobá de carrasco”. Ele dizia que pão de pobre é jatobá e o Piracicaba dizia que uva de pobre é pitomba!
            Pau Pubo ainda diz que Chico Maranhão foi quem fez o Cruzeiro e o túmulo do Matias e que uma vez alguém tocou fogo no terreno e queimou o pequizeiro que havia ao lado da cova, só restando um pé de cajueiro e um pé de “mal-fim”.
            Matias passou a morar, em um casebre minúsculo que fizeram para ele dentro do mato, coberto de palhas e papelões, exatamente no local onde hoje se encontra o cemitério “Campo do Matias”, que fica localizado no limite dos bairros Altamira e Cohab. Ali ele ficava sozinho, a esperar a caridade alheia, dos
poucos que se apiedavam da sua triste situação, já que lhe haviam fugido as forças para a prática da mendicância.
            Dona Delma, viúva de Dico Maninho, na mesma linha de evidências também discorda do fato dele ser leproso: “O Matias tinha câncer no nariz, que ficou uma ferida horrível, e depois foi piorando. O seu Acrízio Figueira, pai da dona Aurora, todos os dias ia tratar do ferimento dele na Altamira e levava água e alimento para ele. Uma vez eu fui com ele e lá eu vi a casinha que ele morava dentro do mato, deitado numa rede. Ele morreu e foi enterrado por lá”.
            Por questão de justiça anotamos também o sentimento de caridade cristã de dona D’Aguir, já falecida, que em várias ocasiões teve compaixão do pobre Matias, ajudando-o em suas necessidades.
            O estado de saúde de Matias se agravava dia após dia. Seu corpo definhava visivelmente. Pouco antes de sua morte, passou por aqueles caminhos dentro dos matos, um senhor de nome Osvaldo, que, escutando o Matias bater nas palhas para chamar a atenção de alguém, pois estava passando mal. Este detalhe de sempre bater as palhas para chamar a atenção foi relembrado por dona Zelinda Araújo. Compadecendo-se de seu sofrimento, aproximou-se da rede e pode ver seu corpo coberto de chagas, completamente ulcerado.
            Pegou um pouco de água com um caneco em um pote que haviam colocado para mitigar-lhe a sede. Como Matias não conseguisse mais abrir a boca para sorver o precioso líquido, Osvaldo procurou e achou nos matos uma folha de palmeira, e fez com ela uma pequena cumbuca para colocar água na boca do moribundo.
            Matias achou bom, esboçou um sorriso, algo raro naquele homem sofrido, de tão triste destino. Saboreou a água novamente. Osvaldo se abaixou para pegar mais um pouco e escutou Matias dizer: - Tá bom! Agora não carece mais não!...Recostou a cabeça na rede e... morreu!
            Nesse momento sua família e alguns amigos estavam presentes. A notícia correu na cidade: - Morreu o Matias! O Matias morreu!
            Trouxeram o corpo em uma rede, para ser enterrado no cemitério Campo da Paz, mas, algumas autoridades municipais de então, não permitiram que ali fosse enterrado e ainda chegaram a dizer: - Enterrem mesmo no carrasco da Altamira! E assim foi feito. Familiares e amigos deram meia volta com o corpo, tangendo as moscas com um pano, e Matias foi enterrado no mesmo local onde morreu, à sombra de um cajueiro e de um pequizeiro que não mais existe. Por ironia do destino, algumas dessas autoridades municipais que vetaram seu sepultamento no centro da cidade, foram se enterrar décadas depois, no mesmo cemitério Campo do Matias, no “carrasco da Altamira.”
            Como tudo na vida é transitório! Como tudo é efêmero! Como Deus escreve certo por linhas certas!
            Nos anos setenta, conta Heider Moraes, a garotada do time do Santos ia de bicicleta jogar no Sujapé e voltavam muito tarde: “Na volta, já noite, alguns dos nossos amigos jogadores tinham o maior medo de passar em frente ao cemitério do Matias. Nesse tempo o cemitério era aberto, tinha apenas uma porta fictícia, tal qual o Arco do Triunfo, apenas para demarcar área, mas era todo aberto. Para alguns, que tinham de passar por ali, o medo de alma era terrível”.
            A vida de Matias, antes de ser uma vida de sofrimento é também uma lição para estes dias conturbados que estamos vivendo, onde sobressai apenas o lucro, a ganância, e a violência, esquecendo-se de que Deus tudo vê, tudo anota e tudo cobra!
            Dizem que a alma de Matias é milagrosa pois muitos já teriam alcançado a graça da cura para suas enfermidades, depois de fazerem suas promessas. Que o digam as centenas de velas que são acesas em seu túmulo todos os dias de finados, dia 2 de novembro de cada ano. Amém!

*Álvaro Braga é pesquisador, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Barra do Corda

 


Túmulo do Matias Oliveira

 

(TB16jan2011)