Crônica
Memórias de uma prostituta
jornal Turma da Barra

 


Cai N´Água em Barra do Corda

*Álvaro Braga


            Elza saiu de Cruz das Almas, na Bahia, mal havia completado 19 anos, e veio parar em Barra do Corda no início dos anos 80, a convite de uma amiga, com promessas de ganhos fáceis, já que iriam para Serra Pelada e lá poderiam arrumar a vida fazendo programas e recebendo em ouro por suas noitadas.
            Mas a vida dá muitas voltas. Logo ao chegar à cidade, sua beleza despertou a paixão dos amantes de sua amiga, que, incomodada, resolveu marcar viagem para Marabá no dia seguinte.
            Elza foi abandonada pela amiga em Imperatriz. O remorso por ter largado os pais, humildes lavradores do sertão baiano, seguido pelo arrependimento pela escolha de vida errada lhe aportaram à alma.
            Em Imperatriz comeu o pão que o diabo amassou, passando a vagar pelas ruas, tendo a fome e o frio como companheiros inseparáveis.
            Foi violentada por uma gangue em um setor grotesco da cidade, então denominado Farra Velha. E por lá ficou, recolhida pelas rameiras de um prostíbulo chamado Tia Deusa.
            Como já conhecesse o ofício, passou a frequentar os cabarés com desenvoltura e ganhar a vida na zona do baixo meretrício.
            Bonita, seu corpo escultural e os longos e sedosos cabelos negros logo incendiaram a cobiça dos homens e a inveja das mulheres. Um golpe de navalha no rosto, desferida por uma rival, pôs fim àquela beleza exótica de orquídea selvagem.
            Sua recuperação foi lenta, e, mesmo desfigurada por horrenda cicatriz que vai do queixo à sobrancelha, logo estava de volta às ruas para “cumprir a sina”, segundo suas próprias palavras.
            Amantes em profusão. Veio o primeiro aborto. Veio o segundo. E o terceiro. Elza transformou-se em um trapo humano.
            Comercializando o corpo a quem lhe pagasse mais, passou a perambular de cidade em cidade: Porto Franco, Tocantinópolis, Araguaína, Redenção, Dom Elizeu, Paragominas, Marabá, Xambioá, Itinga, Parauapebas, Açailândia, Bacabal, Codó, Peritoró, Pedreiras e... Barra do Corda!
            O destino a trouxe ao ponto de partida e hoje habita um velho barracão às margens do rio Mearim.
            Elza tem 50 anos, que parecem setenta. Não tem filhos. Uma pensão, que recebe por ter sido companheira de um estivador que foi morto a facadas, foi suficiente para comprar o casebre em que mora e transformá-lo em botequim sortido unicamente de garrafas de cachaça e cigarros.
            Atendendo a pedidos sempre frita uns peixinhos à guisa de tira-gostos e bebe com os fregueses até cair no chão.
            Embriagada, costuma afirmar zombeteiramente: - Bebo e durmo com eles, pois onde foi casa é tapera! Mulher da vida é de morte! E sorri de si mesma.
            E complementa: “Triste de quem tem a vida envolvida na vida da mulher da vida!”
            Assim é a vida de Elza, que foi procurada pela “primeira das profissões”, a exemplo de Madalena, mas que não merece que lhe joguem a primeira pedra, nem que apontem seus defeitos com o dedo sujo.
            Para distrair liga um velho som da marca Aiwa, “três em um”, e passa a revirar um amontoado de discos de vinil arranhados à procura da música de sua vida, segundo ela. Seus dedos ágeis esbarram em discos que vão de Genival Santos a Silvinho, de Waldick Soriano a Bartô Galeno, de Nélson Gonçalves a Raimundo Soldado, de Núbia Lafayete a Roberto Muller, até que grita: - Achei!
            E pasmem! Ela coloca na radiola, como se fosse um sacrilégio musical, naquele ambiente carregado, a suprema jóia rara de Chico Buarque, a música Folhetim, na voz de Gal Costa:
            “Se acaso me quiseres / sou dessas mulheres / que só dizem sim / por uma coisa à toa / uma noitada boa / um cinema, um botequim.
            E, se tiveres renda / aceito uma prenda / qualquer coisa assim / como uma pedra falsa / um sonho de valsa / ou um corte de cetim.
            E eu te farei as vontades / direi meias verdades / sempre à meia luz / E te farei, vaidoso, supor / que é o maior e que me possuis.
            Mas na manhã seguinte / não conta até vinte / te afasta de mim / pois já não vales nada / és página virada / descartada do meu folhetim”.
            Quantas elzas existirão nessa cidade, a cumprir um destino escolhido pelo seu livre arbítrio? A todas elas, votos de melhores dias.

*Álvaro Braga é pesquisador, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Barra do Corda

(TB27mar2011)