Matéria
O massacre de Alto Alegre:
110 anos

jornal Turma da Barra

 

*Álvaro Braga

Com a descoberta do Registro de Óbito original do cacique João Caboré, no cartório de Segundo Ofício, de dona Iolanda Nepomuceno Silva, resolvemos, além de divulgá-lo aos interessados em História, pesquisadores e estudantes sobre o tema Alto Alegre, em escrita fidedigna, também abordar os dois lados da questão envolvendo religiosos e indígenas, tendo como pano do fundo a vida de um de seus principais protagonistas.

A MORTE DO ÍNDIO CABORÉ

“Livro de Óbitos nº 2, Termo 488 renumerado 525, Folha 9, Cartório Almir Silva, de 2º Ofício, Barra do Corda - MA.


            Aos quatorze dias do mês de novembro de mil novecentos e hum nesta cidade da Barra do Corda, Estado do Maranhão, em meu Cartório, compareceu o carcereiro da Cadeia Pública Francisco João Martins e declarou que as oito e meias horas do dia de hoje faleceu o preso João Manoel Pereira dos Santos, vulgo Caboré em conseqüência de morte natural conforme o corpo, digo, conforme os autos de autópsia procedido no cadáver do referido índio, de idade e filiação desconhecida o qual se há de sepultar hoje, digo sepultar amanhã no Cemitério Público d’esta cidade

Attestado, assignado pelo delegado de Polícia, Aristides Ferreira e Fulgêncio José de Souza, do que lavrei este termo que commigo assigna o declarante.

Eu Julio de Mello Albuquerque escrivão, o escrevi.

Francisco João Martins.”

Frei Bartolomeu de Monza assim descreve João Manoel Pereira dos Santos, vulgo João Caboré:

“O famigerado bárbaro, cruel organizador e executor da chacina de Alto Alegre nasceu nas grandes florestas da Serra Branca. Quando era ainda criança, foi recolhido por uma das mais distintas e honestas famílias de Barra do Corda, de nome Rodrigues. O menino mostrava-se inteligente e ativo. Na convivência com gente civilizada, parecia adotar-lhes os costumes, mas cedo despertou nele o que é “o natural” nos selvagens. A vida errante na floresta era o seu sonho, o seu desejo e sua aspiração. Aos doze anos, encontrou-se com alguns elementos da sua tribo que passavam por Barra do Corda, uniu-se a eles e, sem sequer despedir-se dos benfeitores da sua infância, partiu. Enxuto de corpo, pele acobreada, olhos avermelhados, ardentes, cabelo preto, longo e ondulado, cedo se tornou o ídolo da tribo Guajajara. A sua paixão eram as grandes caçadas; o arco e flecha eram seus constantes companheiros.
            Não havia perigo que ele não enfrentasse. Na luta com uma onça, perdeu um olho, mas saindo vencedor, a perda era, para ele, um perene troféu. Verdadeiro selvagem, desprezava o trabalho; a sua ocupação era a guerra e, quando não havia guerra, era a caça porque, para os selvagens, a caça é também uma espécie de guerra cheia de perigos, exigindo estratégias particulares. Quando não estava nem na guerra nem na caçada, armava a sua rede em qualquer árvore, se estivesse na mata, ou na sua choupana se estivesse na aldeia: ali, se balançava, dormia, fumava, bebia e levantava só para tomar parte nas danças selvagens, ou para se sentar ao redor das fogueiras, contando ou inventando lendas sobre os antigos guerreiros de sua tribo. Católico praticante, pelo menos exteriormente, freqüentava a igreja: o seu lugar era sempre perto do altar, parecia rezar com a maior devoção e era sempre respeitoso com os missionários. Quando os encontrava nunca deixava de pedir a benção e, se alguém de sua tribo cometesse qualquer erro, era ele quem informava os missionários. Todos admiravam a conduta dele e os Padres Capuchinhos depositaram nele toda a confiança. Havia-se tornado – pode-se dizer – um da família.”
            Foi preparado o casamento religioso de João Caboré com as máximas solenidades, inclusive convidando distintas famílias de Barra do Corda e o Juiz da Comarca para celebrar o seu casamento civil. Tudo isso para servir de exemplo aos selvagens para que eles procurassem viver segundo os preceitos cristãos. Tempos mais tarde, Padre Rinaldo foi à São Luis e levou Caboré e Manoel Justino consigo. Estes foram recebidos pelo Governador do Estado, João Gualberto Torreão da Costa que “agraciou com honras e títulos” o Caboré. Reconhecendo-o oficialmente chefe dos selvagens.
            Durante a sua ausência sua esposa foi pedir aos missionários que afastassem de Alto Alegre uma mulher da aldeia com que achava que o marido mantivesse relações ilegítimas. Atenderam ao pedido. Na volta à Missão, Caboré, como soube da decisão tomada, consentiu com o que tinha sido deliberado na sua ausência porque, reconhecia que, como cristão, não lhe era lícito ter duas mulheres. Entretanto, três dias depois, repudiou a esposa, abandonou a Colônia e se embrenhou na mata para viver com a concubina, e fez tudo para afastar da Missão os índios que dependiam dele, e praticou vários atos de insubordinação para se tornar difícil a vida na Colônia.
            Padre Victor ordenou que Atanásio Carolindo de Alveira fosse com quatro soldados prender Caboré. Ele foi preso nas cercanias da aldeia Cana Brava, onde estava Luíza, a sua concubina. Foi levado à Alto Alegre, onde ficou detido por quatro semanas. Lá chegou o Padre Rinaldo que decidiu soltá-lo, após prédicas cristãs.
            Caboré partir sem reclamar, mas em seu íntimo já se formava o plano de vingança. Quando do surto de sarampo instigou Manoel Justino, outro chefe de tribo, para que fosse ao convento exigir de volta as filhas, a pedido de suas mães. Começou a freqüentar as aldeias mais distantes, lá onde não havia batizados, a fim de achar aliados para o seu projeto.
            Prometeu acolhida em sua tribo e prêmios para todos. Foram muitos os que aceitaram. Mandou envenenar previamente todos os cachorros da redondeza.
            Os índios que não participaram do massacre foram os “Canelas de Dois Braços, do Ponto, de Mocura e os Guajajaras de Bacabal, Ungelim, de Jacaré, de Policarpo, José Muru e José Viana. Participaram as aldeias de Pindaré e Maracassumé, delimitados pelas florestas e rios do Gurupi, Monção e Pindaré, onde existiam ainda tribos desconhecidas. Um outro fato determinante da chacina teria sido o assassinato de um velho índio chamado Salustiano Cupy, atribuído a um tal de Jefferson, que teria sido o mandante. Todos os índios de Bacabal foram convidados a vingar aquela morte em Alto Alegre.
            Madre Rubato escreve a Timoteo Zani: “Disseram que os indígenas rebelados eram dez mil, esse número era mesmo de dar medo. Eu, porém me tranqüilizei um poucos, nestes dias ao receber uma carta de um bom jovem de Barra do Corda que eu conheci quando acompanhei as irmãs. Ele me disse que os índios revoltados eram de 400 a 500. Com este número relativamente pequeno, não poderão fazer mal à cidade”.
            Na ocasião padre Carlos lamentava: “Já faz um mês que, por ordem do Governo, lá (em Alto Alegre, os índios estão se dando de donos sem serem incomodados pela justiça do país)”.
            No processo, os fatos foram reconstituídos pelo promotor público Raymundo Bona, no tribunal de justiça de Grajaú. O processo terminou em 26 de julho de 1905.
            O Padre Zacarias, relembra Frei Bartolomeu, em suas Notas Históricas, de 1908, foi a primeira vítima: “As meninas se agarra às suas mães espirituais gritando: salvem as nossas Madres, não as matem, deixem elas vivas”... Mas o sangrento extermínio continuava feroz, sem interrupção. Na confusão algumas conseguem se esconder... mas logo são procuradas e a faca ou a borduna na mão do selvagem não sabe poupar ninguém. A irmã Ana, de nacionalidade brasileira, ainda noviça, é cruelmente ferida estando no alto de uma escada, entre os gritos deprimentes das pobres meninas. Ainda viva é jogada de escada abaixo.
            Prostrada no chão, ela acha força suficiente para se dirigir às meninas que a contemplavam e choravam e diz para elas: “Fujam, minhas filhas, fujam... salvem-se, conservem-se boas, amem a Nosso Senhor!”. Como acharam que estava morta, deixaram-na. Ao meio dia ainda respirava. A pequena Úrsula vê a irmã com o terço na mão, orando. A pequena, já sua aluna, aproxima-se-lhe e diz: por amor de Deus, não se mexa, por que, se aqueles bárbaros virem, eles a matam”...Poucos momentos depois ela expirou. O Padre Victor, que se encontrava sozinho em casa, juntamente com o coadjutor Pedro da Paullo, apresenta-se e uma bala o atinge em um braço. Não se intimida e, com voz calma e amiga, fala: “O que é que querem? Eu sei que nada de mal lhes fiz, antes, sempre vos amei. Nenhum dos meus vive mais aqui. Querem matar este pobre frade? Estou pronto, mas não façam mais vítimas. Foi baleado ali mesmo. O Padre Rinaldo e Frei Salvador e quatro irmãs, na confusão geral, conseguiram se afastar e esconder-se, mas foram procurados e, arrombada uma porta, foram achados. Mataram as irmãs com todas as armas que tinham à disposição: espingardas, punhais, facas e paus. “Logo em seguida a arrastaram e jogaram amontoadas na cisterna que estava aberta no pátio interno do colégio”. Somente pouparam da matança Guilhermina Moreira, Perpétua, Benedita Mourão, Petronila, Tunica, Celestino, Petronilia Ribeiro e Úrsula Ribeiro. “Estas foram feitas prisioneiras e levadas pelos selvagens, à viva força, em suas aldeias”. Presume-se que todas morreram, com exceção de Úrsula, que, por ser muito pequena foi deixada para trás. Alguns dias depois foi salva e levada para Barra do Corda. Ela morreu em 10 de abril de 1907. Eu mesmo a assisti, escreve Frei Bartolomeu de Monza, já Provincial Missionário Capuchinho – e levei o seu corpo para o cemitério.
            Caboré, interrogado durante o processo a respeito do lugar onde se encontrariam as meninas cristãs do convento, respondeu que todas tinham sido mortas pelos índios Miguel, Maximiliano e Bernardo, exceto uma pequena que foi deixada e foi encontrada pela Força do governo. Era a pequena Úrsula. Falou também ele que, os religiosos eram pais e as religiosas eram mães dos índios”. O senhor Frederico Figueira, redator no jornal O Norte afirmou no processo que os
religiosos haviam feito “uma grande e humanitária obra de civilização, no que concordaram todos os jurados. Frei Bartolomeu finaliza dizendo, em suas Notas Históricas, de 1908:
            “João Caboré não viu o dia da libertação dos seus súditos-companheiros ocorrida em 27 de julho de 1905 pois já havia falecido em novembro de 1901. E no mesmo dia em que foi pronunciada a sentença de absolvição, eles foram libertados, e muitos habitantes da cidade “que os haviam recebido em 07 de agosto de 1901 com a maior indignação” tomaram parte na festa e do grande baile em honra deles.
            No dia seguinte eles andavam pelas estradas meio embriagados, ameaçando vingar-se dos jurados que se negaram a votar em seu favor. Também o comportamento protelador do Coronel Pinto insinua a suspeita de que tenha recebido, quanto menos, ordens ambíguas, se não coisa mais concreta, em favor dos índios que haviam participado ou favorecido o morticínio”.
            João Caboré morreu na Cadeia de Barra do Corda, no dia 14 de novembro de 1901, dois dias depois de ter recebido a visita do padre italiano Roberto de Castellanza, ele reconciliou-se com Deus e com os irmãos, recebendo na ocasião os Santos Sacramentos: Unção (óleo) dos Enfermos e a Absolvição Sacramental. Foi enterrado no velho Cemitério Municipal São Benedito, perto do Porto das Almas (atual Praça Gomes de Castro), ao lado de um velho tronco de catingueira, perto do túmulo de Mello Uchôa, onde foi construída depois a casa de Raimundo Pinto que pertenceu depois à Wálter Lobo, segundo informações do senhor Jackson Barros, de 92 anos. Um ano depois (14-11-1902) falece na cadeia, e também é assistido pelos padres, o índio Cadeto Manoel Paiva, braço direito de Caboré. Seus amigos índios, cerca de trinta, só seriam libertados no dia 27 de julho de 1905, em meio a uma grande festa, com muitas danças, inclusive com a participação de parte da mesma população que anos antes assistia horrorizada a marcha dos prisioneiros rumo à cadeia.
            Seu Pedro Barros, escultor e artesão, já falecido, produziu uma peça
com o nome “Indio Caboré”.
            O jornal Turma da Barra de 1992 a seguinte matéria: “Seu Pedro Barros, trabalhou muitos anos utilizando ferramentas rudimentares, como facão, peixeira e machado, até mesmo o crítico de arte e seu protetor, Escchrique, lhe forneceu ferramentas apropriadas. Para o jornal Turma da Barra, ele confessou, em entrevista, que o cerrado era sua oficina natural, pois nele passava o dia inteiro, só retornando com uma escultura pronta nas costas. “Quando chego ao cerrado e vejo uma árvore, já estou vendo uma porção de bichos na minha imaginação”, contava ele.
            Uma peça dele, batizada “Indio Caboré” está no Museu de Arte Popular em Brasília. Imagens de índios formavam o arquétipo mental de Seu Pedro, que com eles conviveu em sua infância em Barra do Corda.”
            A metodologia empregada na Catequese dos índios Guajajaras levada a termo pela Missão dos frades Capuchinhos em Alto Alegre constituiu-se em um dos maiores erros crassos da civilização.
            A forma de abordagem dos silvícolas, sem levar em consideração a diversidade, aspectos e nuances de sua cultura em muito contribuiu para a catástrofe, que ceifou centenas de preciosas vidas humanas dos religiosos, das crianças internas,dos moradores de Alto Alegre e arredores e dos próprios índios.

Álvaro Braga é historiador e pesquisador e mora em Barra do Corda

(TB13/mar/2011)